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Monólogos Ácidos

A anistia que foi sem ter sido ou o dormitório sem despertador

Por Marcel Cheida



A divulgação do inquérito que apura as responsabilidades da tentativa do golpe na transição de 2022 a 2023, Bolsonaro para Lula, evidencia os bastidores no qual alguns altos oficiais do Exército, um deles general da reserva, e um policial federal começaram a executar o plano para assassinar o presidente eleito e o vice-presidente, mais o ministro do STF, Alexandre de Moraes. Ao todo, foram indiciadas 37 pessoas, e pela primeira vez após 1964 altos oficiais do Exército vão responder pelo crime de tentativa de golpe de Estado e ameaça ao Estado de Direito.


O cuidadoso inquérito expõe o que se comentava na penumbra da política nacional: houve, sim, preparação e início da execução do golpe contra o Estado Democrático de Direito. As alegações espúrias sobre o fantasmagórico comunismo, o injurioso Lula ladrão, a oposição ao abstrato sistema, o messianismo bolsonarista, hipocrisia no discurso do combate à corrupção e a pretensa e abjeta eliminação do PT ou da esquerda compusera o elevado volume discursivo da extrema-direita, da direita rancorosa, do segmento militar golpista.

A história do Brasil, desde 1822, é marcada por vários episódios conflituosos em relação à estabilidade governamental. A crise que antecedeu o retorno de D. João VI a Portugal, em abril de 1821, resultava do movimento liberal e parlamentar que ameaçava a Corte. Depois, após um grave cenário econômico que afetou o governo após a Independência, D. Pedro I sai do Brasil, também em abril, mas dez anos depois da volta do pai a Lisboa. Mas, D. Pedro I vai à Inglaterra onde reúne um exército para invadir Portugal, enfrentar o irmão D. Miguel I e a mãe Carlota Joaquina. D. Pedro I conquista Portugal das mãos do irmão e entroniza a filha, Maria, como rainha conforme a sucessão dos Braganças. Alguns historiadores observam que D. Miguel I seria filho bastardo, pois a mãe teria engravidado de um amante.


O Império sob o reinado de D. Pedro II é marcado por movimentos de separatistas, a Guerra do Paraguai e, por fim, o golpe que modelou a República, cujo cenário, no Rio de Janeiro, foi montado entre altos oficiais e uma elite de adeptos ao positivismo, como Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor de matemática na Escola Militar. Constant foi protagonista do pensamento positivista na formação de inúmeros oficiais do Exército, bem como na disseminação dos ideais de Augusto Comte. Até hoje, a formação militar brasileira é contaminada pela visão de um modelo sociológico anacrônico.


E a República começa com crises diversas, com a renúncia do Marechal Deodoro da Presidência e a posse do general Floriano Peixoto, sem ter havido eleições conforme previa a Constituição de 1891. Ou seja, a República nasce sob o golpismo fardado.


O jornalista, republicano, o advogado e ex-deputado provincial, Aristides Lobo, foi militante em favor fim da escravidão. Num artigo na forma de carta, publicado no jornal Diário Popular, na edição do dia 18 de novembro, ele expressa, de modo conciso, o que foi o golpe sem a participação popular, mas conduzido pelos militares: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.” A República, porém, era o projeto que poderia ser a superação das graves dificuldades enfrentadas no final do Império, que nenhuma reação esboçou à ação dos militares. Instalado o governo provisório, Lobo foi nomeado ministro do Interior, cargo que ocupou durante dois meses apenas. Divergiu e confrontou o marechal Deodoro da Fonseca, cuja formação e trajetória eram distantes do pensamento positivista e republicano. Lobo integrou, contudo, a assembleia constituinte, para a qual foi eleito como deputado federal em 1891.


Num salto de 133 anos, desde então, a tentativa de golpe no final de 2022 e no vandalizado 8 de janeiro de 2023, os militares envolvidos não acompanhavam nenhum Benjamin Constant e muito menos um Aristides Lobo para dar uma mínima consistência filosófica ao que pretendiam como Estado.


Ao longo do século 20, outras intentonas e episódios golpistas desenharam o Brasil contemporâneo. Em 1924, por exemplo, Artur Bernardes, o “seo Mé”, diletante consumidor da cachaça, governou com o Estado de Sítio decretado, após diversos episódios conflituosos durante o mandato do antecessor, Epitácio Pessoa. Eleito, Rodrigues Alves, antecessor, morreu antes da posse. Na eleição, Epitácio Pessoa se elegeu ao derrotar Ruy Barbosa, mas aí começa uma sucessão de crises que culminam com a revolta do Forte de Copacabana. Os militares revoltosos acusavam a degeneração da política café-com-leite que qualificava (ou desqualificava) a sucessão dos mandatos na Presidência da República.


Mais tarde, o gaúcho Getúlio Vargas lidera a revolução de 1930, evento em que até hoje se discute se conceitualmente foi um golpe travestido de revolução. O movimento conduzido por oficiais militares, mais uma vez conseguiu a deposição do presidente eleito, Washington Luiz, e obstruiu a posse do eleito, o paulista Júlio Prestes, num período também marcado pela instabilidade política e econômica, em especial pela quebra da bolsa de Nova Iorque e a crise cafeeira. O motivo alegado para o golpe foi uma farsa, o assassinato de João Pessoa, por razões políticas, pois era governador da Paraíba e foi candidato a vice-presidente da República na disputa com Júlio Prestes, em 1930.


Em 1932, o movimento constitucionalista embala o conflito entre as tropas paulistas e as federais. Getúlio, na sabedoria política, derrota os adversários, mas convoca a constituinte, que em 1934 promulga a segunda carta constitucional do País. Os ventos fascistas e nazistas gerados na Europa atingem a América, do sul ao norte, e inúmeros políticos e empresários aderem ao modelo autocrático e totalitário. Getúlio é um dos que se identificam com essa ventania que vai varrer a Europa com a II Guerra Mundial. Porém, a influência norte-americana, após o ingresso na guerra em razão do ataque japonês a Pearl Harbor, leva Vargas a negociar projetos para o Brasil em troca do apoio aos aliados. O ataque dos submarinos alemães a navios de cargas no Nordeste foi fato que impulsiona a adesão do governo brasileiro à luta contra o nazifascismo.


Um pouco antes, em setembro 1937, é divulgada a notícia, no programa Hora do Brasil, difundido obrigatoriamente na rede de emissoras de rádio do País, de que fora encontrada uma carta, cujo conteúdo compreendia um plano de golpe de estado formulado por comunistas para derrubar o governo. Quem informa sobre a possível insurgência foi chefe do Estado-Maior do exército brasileiro, o general Goés Monteiro. Denominado de Plano Cohen, Getúlio usa esse documento para justificar o golpe de novembro de 1937, quando fecha o Congresso, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereador, destitui os governadores de Estado e nomeia os interventores.


Uma das vítimas do ato autoritário, foi o movimento e o partido Integralista, de formato fascista, além de todos os outros segmentos políticos de oposição. Mais tarde, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o próprio general Góes Monteiro desvenda a farsa. O Plano Cohen não passou de um texto fictício elaborado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho (aquele que, general, comandou a infantaria a partir de Juiz de Fora, MG, para desencadear o golpe militar em abril de 1964). Mourão Filho era integralista e conseguiu terminar a vida como ministro do Superior Tribunal Militar.


A iniciativa de Mourão Filho passou a servir de modelo, posteriormente, para as alas militares radicalizadas, ao planejar ações terroristas e jogar a culpa na esquerda, como aconteceu com o episódio do Rio Centro. Nos últimos anos, Jair Bolsonaro serviu de inspiração e foi protagonista de inúmeras farsas, as tais narrativas, como o inimigo comunista, a “gripezinha” da Covid, as urnas eletrônicas fraudulentas, entre outras. A farsa se tornou a propaganda para disseminar medo e atrair boa parte das pessoas ao plano de implantação de uma ditadura no Brasil sob o comando do Jair e de outros generais.


Outras tentativas golpistas ocorreram após a Segunda Guerra. Carlos Lacerda se tornou um protagonista da defesa do golpismo contra o mandato de Getúlio Vargas, eleito democraticamente presidente da República em 1950. A tentativa de assassinato de Lacerda, em 1954, resultou na crise que levou Vargas ao suicídio, como ato de honra.


Em seguida, a eleição de Juscelino Kubitschek foi alvo de contestação da oposição, que alegava não ter sido eleito com votação majoritária, pois obteve cerca de 35% dos votos contra 30% dos votos dados ao adversário Juarez Tavora, da UDN. Coube ao general Henrique Lott liderar a resistência e assegurar a posse de Juscelino.


Juscelino enfrentou duas tentativas de golpe militar durante o mandato. Em fevereiro de 1956, oficiais da Aeronáutica tomaram a base militar de Jacareacanga, no Pará. O presidente recorreu ao comando da força, mas não conseguiu a adesão dos altos oficiais. Contudo, as forças legalistas entraram em cena e reprimiram a insurgência.


Em 1959, também oficiais da Aeronáutica e do Exército organizaram a tomada do poder pela força a partir de Aragarças, Goiás. Nesse episódio, oficiais da Aeronáutica se apossaram de um avião da Pan Air, Constelletion, no primeiro episódio de sequestro aéreo no País. A revolta, contudo, foi reprimida. Os rebelados chegaram a fugir. Entre os oficiais presos, estava o tenente-coronel da Aeronáutica, João Paulo Moreira Burnier, mais tarde brigadeiro que idealizou o plano para colocar bombas no Gasômetro, no Rio de Janeiro, e culpar a oposição. Isso em 1968, quando esse oficial integrou a Junta Militar com a decretação do AI5.


O plano só não foi sucesso porque um dos oficiais que integrava o grupo Para-Sar, da Aeronáutica, o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco, denunciou o caso. Burnier negou, então, que teria participação. Esse mesmo oficial que foi preso pela insurgência em Aragarças, teve o benefício da anistia assinada por Juscelino. Mais tarde, foi ativo participante do golpe de 1964 e do movimento que resultou na posse da Junta Militar sob os auspícios do AI5.


A sede de segmentos militares em tomar o governo sob um regime autocrático é longa e obsessiva. Sobral Pinto, o advogado que defendeu os comunistas Luís Carlos Prestes e o alemão Harry Berger durante o Estado Novo getulista, dizia que quando os militares deram o golpe em 1889, se consideraram os “donos da República”.


Num jogo retórico, depois do 8 de janeiro de 2023, o bolsonarismo propagandeia a necessidade da anistia para “pacificar” o País. Atrás disso, a anistia para Bolsonaro, que sabia que enfrentaria as acusações diversas, entre elas a de participar do planejamento do golpe de Estado e da abolição violenta do Estado de Direito, além da associação criminosa.


Sobre a anistia, que é o perdão e o esquecimento dos atos insurgentes e criminosos contra o Estado de Direito, vale o verbete Esquecimento, do jornalista e escritor Ambrose Bierce, na obra Dicionário do Diabo, publicada em 1888, nos EUA:


Esquecimento


“Estado ou condição em que os maus param de se esforçar e os melancólicos ficam em paz. Eterno depósito de lixo da fama. Geladeira de grandes esperanças. Lugar onde os autores ambiciosos encontram suas obras sem orgulho e os que os superam, sem inveja. Dormitório sem despertador”.



Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.


 

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