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Monólogos Ácidos

Atualizado: 27 de ago.

Tudo é cosmético e falacioso

Por Marcel Cheida


E chegam as eleições municipais. Em torno delas, o espectro da disputa pela presidência em 2026. Vários candidatos e atores políticos misturam alhos com bugalhos. A preocupação com a audiência via redes sociais, televisão e outras mídias condiciona comportamentos que deságuam em acusações levianas, formatadas em clichês reforçadores de preconceitos.


Vários candidatos, com maior exposição nas disputas nas capitais ou cidades de média e grande porte, adotam o modelo inspirado nas técnicas formuladas por Steve Bannon na campanha do Trump vitorioso em 2016, ou Gianroberto Casaleggio, o marqueteiro italiano que aplicou métodos similares na Itália no projeto de construção do comediante Beppe Grillo como personagem político.



Se antes os candidatos convocavam o exército de militantes analógicos, com estratégias de ação nas ruas, bairros, de modo presencial, desde a eleição de Barack Obama, pioneira no uso de blogs, sites e redes sociais na campanha, o exército é de militantes digitais. Se a campanha de Obama se limitou a transpor para o mundo digital as discussões e programa de governo herdadas da era analógica, a partir de Trump houve a expansão geométrica do vale-tudo, da aplicação anarquicamente planejada do argumentum ad hominem (argumento contra o homem, como sujeito moral) no debate político. Esse modelo se caracteriza pelo uso falacioso de resposta ofensivas ao interlocutor, de modo a desqualificá-lo moralmente em vez de tratar do argumento proposto. Os trumpistas, por exemplo, acusavam covardemente a adversária, Hillary Clinton, de pedofilia.


Bolsonaro e companhia são adeptos dessa estratégia argumentativa orientada, então, pelo pretenso filósofo Olavo de Carvalho. Bannon também ajudou a campanha de 2018 no Brasil. A falácia é típica na resposta ofensiva dada a perguntas incômodas. Mais recentemente, no debate entre os candidatos à Prefeitura paulista, o boquirroto coach Pablo Marçal, desviava-se da acusação de ter sido condenado por furto qualificado, pelo Judiciário em Goiás, atacando os adversários como “comedores de açúcar”, “comunistas”, adeptos da “rachadinha”, de modo a desqualificar moralmente o oponente. Assim, não respondia e nem refletia sobre as questões de fundo, dos programas de governo. Optou por se travestir de personagem de discurso fragmentado, estruturado na ofensa, no insulto raivoso.


Desse modo, os usuários da técnica ad hominem herdam, de algum modo, o que o então candidato à Prefeitura e depois Governo de São Paulo, Paulo Maluf, aplicou nos primeiros debates promovidos pelas emissoras de televisão. Era a década de 1980, no período da retomada das eleições para prefeitos das capitais e para governadores dos Estados. Quando um jornalista propunha uma questão a ele, respondia se dirigindo à câmera e à audiência com respostas que lhe interessava; e não para esclarecer a pergunta proposta. Maluf, porém, procurava manter um limite ao insulto. Às vezes respondia com ironia as afirmações sobre as suspeitas de corrupção. Mas, evitava o insulto pessoal.


Hoje, os ataques morais são mesquinhos e rebaixam o debate à troca de acusações pessoais, periféricas, num tom de performance vidiota. Ou seja, o vídeo se torna o quadro de estímulo às expressões performáticas, as quais se manifestam pela imagem como recurso predominante. A audiência vibra com tais desempenhos, cuja aparência encobre a incapacidade do personagem em explicar e comentar os graves desafios governamentais. Bolsonaro e Marçal são “manos” nessa prática.


A técnica discursiva de atacar o autor da questão em vez de refutá-la revela o empobrecimento avassalador do debate político, que se transforma em algo cosmético e meramente sentimental (há quem a qualifique de sensacionalista), pois estimula apenas o estado impulsivo e emotivo de quem o acompanha. Sufoca-se, portanto, a reflexão, o compromisso com a verdade factual, com o detalhamento do raciocínio. É tudo festa inconsequente, fragmentada, agora, pelas redes sociais.


Ao agredir moralmente o adversário, o protagonista do mundo da web e do universo audiovisual repagina a velha fofocada maledicência, marcada pelo discurso dramático sobre o pecado do vizinho ou da vizinha. Vale muito mais o emprego das expressões emotivas do que o conteúdo na velha fofoca.

O verbo lacrar ajuda a dar significado a esses procedimentos, pois revela o uso de apenas um segmento da imagem e fala do debatedor (se é que podemos chamá-lo assim), sem o contraditório, para ser exposto nas redes sociais. A mensagem é direcionada para a bolha da audiência, do segmento de público, que acompanha o protagonista pelas redes. Desse modo, há o reforço sobre a adesão à imagem do candidato, sem que haja a possibilidade de compreensão do contexto do assunto em pauta, das questões em jogo, das demandas sociais, políticas e econômicas do universo governamental.


O professor de Harvard, filósofo e pensador social, Roberto Mangabeira Unger, disse certa ocasião que o político tem de ter duas virtudes, a pedagógica e a profética. A pedagógica para esclarecer, didaticamente, a complexidade das questões e ações políticas e governamentais; a profética para apontar os horizontes e caminhos para a superação dos desafios e confrontos típicos dos jogos de interesses dos inúmeros grupos sociais na disputa nesse cenário.


O candidato à eleição, porém, virou personagem maquiado para a mídia audiovisual, seja para a televisão, seja para plataformas da web, seja para as redes sociais. Tudo é cosmético. E os partidos políticos, que deveriam cuidar dos programas e da doutrina adotada ideologicamente, se omitem. Assumem a mediocridade enquanto os comandantes cuidam da gestão do bilionário fundo partidário.


As eleições municipais estão contaminadas por essas técnicas e procedimentos aplicados ao mundo digital. O comportamento dos atores políticos incorpora o que de pior pode orientar as coisas no mundo, a superficialidade, o descompromisso com os fatos e as informações verazes, com os dados estratégicos de governo e dos municípios. As campanhas não empolgam as ruas; apenas a relação solitária e individual do sujeito na bolha da internet aparenta envolvimento, o qual expressa os sentimentos ao postar uma impressão pessoal, uma ofensa, uma frase jocosa ou quando reproduz um meme.


É o cidadão digital alienado da própria condição. Ou seja, está afastado mentalmente da complexidade conflituosa da política, a qual exige mais que informação, exige formação, conhecimento. Mas, no mundo das redes sociais, a informação imagética fragmentada, provocadora de comoções, é a que vale. O resto é o mundo aí fora, sem importância.


Na babel cacofônica que são as redes sociais, acompanhar os debates e as campanhas se tornou um esforço descomunal de filtragem do pouco que pode ser válido. É a garimpagem digital, que exige da audiência empenho crítico para separar o joio do trigo. E haja joio.


A complexidade dos espelhos enganadores, da maquiagem e da fala cosmética, do predomínio de uma retórica ofensiva ou vazia, do desempenho ou da tal performance marqueteira e do descompromisso com os fatos são constantes e entorpecem os sentidos de modo a exigir cada vez mais esforços mentais para distinguir o que é válido do que é falso.  Talvez, por tudo isso, o Brasil abriga a população que mais acredita em fake news no planeta, segundo pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O brasileiro, entre 40.756 entrevistados em 21 países, é o que mais acredita na mentira digital.

 


Sobre as ideologias no mundo virtual ou audiovisual, recomendo a obra do Eugênio Bucci, A Superindústria do Imaginário – como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. Da editoria Autêntica.



Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.



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