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Monólogos Ácidos

Atualizado: 4 de dez. de 2022

O golpismo e os extraterrestres

Por Marcel Cheida



Em 2018, a mamadeira de piroca, o kit gay, os infernais comunistas, os universitários maconheiros e orgiásticos, as tais aulas de doutrinação de ideologia de gênero, entre outras bobagens, convenceram milhares de brasileiros a votar no candidato da extrema-direita. E ele venceu.


A moldura daquela eleição levou o Brasil a enfrentar quatro anos singulares. A turbulência expôs o mecanismo do denominado partido militar, composto por generais da ativa, outros reformados ou da reserva, os quais de fato conduziram as ações de governo nesse tempo. A reivindicação militar como poder moderador, de modo a tutelar outros poderes, alçou voo retórico, sem encontrar amparo constitucional. Mas, nesses quatro anos, a tal guerra de narrativas foi o recurso eficiente que contou com a expansiva atividade subterrânea ou superficial das redes sociais.


O plano deu certo, enquanto durou e deixa uma nova modalidade de propaganda político-partidária desenvolvida desde a Cambridge Analytics, empresa nascida na Universidade de Cambridge, Inglaterra. O grupo passou a coletar dados de usuários das redes e chegou a um acordo com o Facebook que permitiu o uso das informações dos usuários para uma das mais bem sucedidas ações de propaganda e domínio de processos de difusão e convencimento político-partidário.


O modelo contribuiu para a Inglaterra optar por sair do Mercado Comum Europeu, sob alegações de que a economia inglesa estava ameaçada, os trabalhadores ameaçados e a globalização seriam o terrível inimigo da nacionalidade bretã. Deu no que deu: a Inglaterra, hoje, sofre com uma grave crise econômica, pois o mercado ficou reduzido. A decisão dos ingleses foi estimulada por delírios e fakenews, munição comum nas redes alimentadas por grupos de poder. Foram contra um dos fenômenos do capitalismo contemporâneo, a expansão dos negócios transfronteiras que resultaram na desterritorialização do mercado. Ou seja, a internet gerou o fenômeno que permite que qualquer organização possa negociar com qualquer público em qualquer parte do planeta, independentemente das fronteiras territoriais, nacionalistas.


No Brasil, o discurso antiglobalista, de pendor nacionalista temperado pela nostalgia das décadas de 1960 e 1970, sob a tutela do regime militar, tomou conta dos eleitores ressentidos contra os erros políticos dos governos de aliança comandados pelo PT, revoltados contra o volume de notícias sobre os casos de corrupção manuseados pela operação lava jato. O denominado “gabinete do ódio” passou a operar a Internet e emitir, de modo avassalador, mensagens e fakenews para consolidar a opinião em favor do bolsonarismo e contra o inimigo comunista petista. Fortunas foram investidas nesse processo, hoje alvo de investigações no STF. Um dos agentes que comanda esse sistema que municia a guerra de narrativas é Carlos Bolsonaro, ex-vereador no Rio de Janeiro, filho do presidente.


A corrupção nesse período, desde as denúncias e o julgamento do caso Mensalão, chegando ao Petrolão (haja rima pobre com ão nesse mundo), evidenciou o quanto a estratégia do governo de alianças teve um alto preço com a distribuição de poder entre os partidos que compuseram a tal governabilidade.


Mas, como diriam por aí, pior sempre pode ficar. E ficou. Sob a narrativa de combater a corrupção, a globalização, o comunismo, a decadência dos costumes, a ideologia de gênero, entre outras bobagens, o bolsonarismo estruturado pelo partido militar venceu as eleições. E trouxe uma turbulência nunca vista desde a promulgação das Constituição em 1988.


O ideário neoliberal estava personificado no posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes, que deixa o governo com um orçamento no qual as dotações para os serviços públicos de Saúde, Educação, Transporte, entre outros, praticamente inexistentes. O “messias” amparado por generais, coronéis e outras patentes tomou a lança pretensamente abençoada pela bancada evangélica para combater os demônios da esquerda e restituir a beleza do sentimento pátrio e da família. Os escândalos, porém, foram se multiplicando.


As quase 700 mil mortes pela Covid-19 denunciaram a incompetência da gestão do Ministério da Saúde, cujo momento de maior conturbação ocorreu durante a gestão do general Eduardo Pazuello. As mortes pela falta de iniciativa e ações emergenciais denunciavam o cruel plano intencionado por Bolsonaro de estimular a imunidade de rebanho, de modo a evitar que o mundo produtivo, comércio, indústria, serviços, escolas, fechasse as portas e ameaçasse a economia de colapso. A principal arma contra a pandemia e o negacionismo, porém, foi a vacina do Butantã.


Outras mortes provocadas por esse ambiente nefasto ocorreram, animadas pela disputa em torno do bolsonarismo. As chamas das queimadas pincelavam insistentemente a Amazônia, onde, no Vale do Javari, segunda maior área indígena no Brasil, em junho deste ano, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, que estava pesquisando a região para um livro sobre a Amazônia, foram mortos por pescadores. O assassinato de ambos caiu e esparramou sangue no Palácio do Planalto. O presidente, para variar, afirmava nada ter com o episódio, depois de incentivar os crimes ambientais desde a posse em janeiro de 2019.


Outros assassinatos enriqueceram o currículo bolsonarista desde então. Durante uma festa de aniversário, em julho deste ano, o guarda municipal de Foz do Iguaçu, Paraná, Marcelo Arruda, foi assassinado por um agente do sistema penal, adepto do bolsonarismo. Marcelo era simpatizante do PT e comemorava o aniversário.


Agora, em novembro, um adolescente de 16 anos, armado, com roupas de camuflagem e com símbolos nazistas costurados nas mangas e no peito, invadiu duas escolas, em Aracruz, Espírito Santo, atirou em vários alunos e professores. Bolsonaro não se dignou a qualquer manifestação de pesar, como de outras tantas vezes, como nada tivesse a ver com o ambiente raivoso insuflado por ele e adeptos. O resultado da ação do adolescente, filho de um tenente da PM, foram quatro mortes e 12 feridos.


Outros episódios que misturaram assassinatos, tentativa de assassinato e ameaças se somam na coluna das ações do atual (des) governo, que tenta escrever o epílogo do mandato com o golpismo.


Mesmo após a derrota eleitoral, a guerra das narrativas insiste na mentira da fraude eleitoral, das urnas manipuladas pelo TSE e pelos adversários ou inimigos políticos. Na rinha dos militares, o vice-presidente, Hamilton Mourão, reacende a mentalidade anticomunista ao publicar uma nota no twitter em homenagem à derrota da Intentona Comunista em 1935. Qualifica o embate entre a direita conservadora e a esquerda revolucionária, numa nostálgica mentalidade anacrônica que permanece firme e forte na década de 1970, quando era oficial menor no regime militar.


Estimulados pelos agentes do bolsonarismo, milhares de adeptos se posicionaram em frente a quartéis para pedir a tal intervenção militar. Ou seja, que Bolsonaro convoque os militares para intervir no TSE, no STF e assim possa ditar como deve ser o governo. Essa gente quer, enfim, colocar o Brasil dentro de um quartel, sob a trilha do Hino Nacional, para ainda abafar os gritos dos torturados nos porões de delegacias e de nojentas salas aquarteladas.


É o golpismo, fenômeno da sedição, da insurreição. Minoria derrotada na eleição, legítima, rejeita reconhecer o eleito, o vitorioso. E insiste na fraude de um sistema que sempre foi alvo das narrativas bolsonarista, o mal de todos os males. Ora, o sistema não passa de uma abstração. Na política, o combate é com gente de carne e osso, com gente que pensa ou nem tanto, com gente que tem mais ou menos o poder de decidir e agir. Mas, o golpismo se sustenta nas fakenews, no apelo aos extraterrestres, na morte de Lula, já que o comando militar parece aguardar os acontecimentos e, por enquanto, diz que as eleições foram válidas e o vencedor vai tomar posse.


O golpismo é a incompetência política e a incapacidade de entender o contrato social. Quem defende o golpe detesta o Estado de Direito Democrático, detesta a Constituição, detesta a civilidade. A história dos regimes militares na América Latina é a história do fracasso governamental, da crueldade da tortura, do personalismo e da tirania, dos baixos índices de desenvolvimento econômico e de qualidade de vida, do enriquecimento abjeto dos tiranetes.


O golpismo é monoglota. Recusa, porque afirma a ignorância, a pluralidade das vozes e da cultura de uma sociedade, de um povo que não é homogêneo nos interesses e nos costumes. Rejeita a diversidade porque é ameaça à certeza boçal de que o universo é expressão do egoísmo narcísico. A terra plana que o diga.

Golpismo é barbárie.


Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.

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