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Monólogos Ácidos

Atualizado: 23 de jun. de 2022

A negação da política, por Marcel Cheida


Os arroubos de Jair Bolsonaro contra o tal sistema político evidenciam um sujeito deslocado numa trajetória pavimentada no parlamento durante 28 anos e, desde 2019, na Presidência. O discurso centrado na defesa da própria família, na proteção desenfreada às traquinagens dos filhos e numa moral suspeita resulta num conjunto de ideias simpáticas para expressivo segmento da sociedade. A referência discursiva e comportamental de Bolsonaro é a moral, a crença pessoal em torno de valores e desvalores num flagrante conflito com a política.


Explico: o campo moral encontra-se na dimensão individual, abrigado na subjetividade de cada um, moldado pela experiência singular do indivíduo. O campo político se manifesta nas relações coletivas, numa dimensão construída objetivamente, ou seja, pelos acordos negociados para a aplicação de projetos comuns.


Desse modo, são duas dimensões que se entrelaçam, mas que apresentam atributos próprios. Significa que os valores morais são distintos dos valores políticos, pois estes centram-se na conquista ou na manutenção do poder no Estado.


Ao atacar o tal sistema, Bolsonaro rejeita a dimensão política, na qual ele se encontra e na qual sobreviveu, até com os filhos, nos últimos anos. Desde que foi compulsoriamente reformado como capitão, a caminhada é um misto de insultos morais com retórica salvacionista. Conseguiu, por vários motivos, magnetizar boa parcela do eleitorado com esse comportamento errático, pois contou com uma equipe eficiente no uso das redes sociais e com a visão moralista presente em parte da sociedade. Ou seja, de pessoas que enxergam o mundo apenas pelo filtro moral, sem entender que a política é o ambiente dos interesses conflitantes negociados de modo a superar possíveis confrontos violentos.


Ao inventarem a política como um conhecimento sobre a formação e a sustentação do Estado, os gregos, orgulhosamente, diziam se diferenciar dos bárbaros, pois esses não dominavam a língua grega, não passavam de um estrangeiro tosco, animalesco. Assim, pela língua grega formularam a assembleia, na qual todos os cidadãos poderiam opinar livremente para moldar os rumos do Estado.


Desde então, passando pelos romanos e por tantas outras experiências civilizatórias, a política se tornou objeto das ciências humanas que a descreve como capital simbólico, conforme Pierre Bourdieu. Assim, o ato ou o comportamento político se revela no discurso que busca racionalizar, organizar e dar sentido a projetos e planos de interesse coletivo e resultante de consensos, como alinhava Norberto Bobbio. Ao propor a violência, a disseminação de armas (sob a justificativa de combater ditaduras) e o confronto fora do sistema constitucional ou legal, num tom personalista, Bolsonaro apregoa a tirania.


Vale lembrar Ulysses Guimarães, quando disse que “a saliva é o lubrificante principal da política”. Para os gregos, a palavra logos significava tanto a razão, a lógica, como o discurso e a palavra (filologia). Negar, portanto, a política é negar a razão.


Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).


Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito

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