O cinismo do puto virginal
Por Marcel Cheida
Paulo Francis disse ou escreveu, certa vez, que “jornalismo é essencialmente notícia interpretada.” A afirmação abriga duas ideias: no jornalismo, a notícia ancora qualquer linha escrita. Seja no impresso, no áudio ou no audiovisual. Se o jornalismo é braço do sistema democrático, um vigilante atento ao discurso do poder, o objeto central da interpretação são as relações políticas, a disputa pelo poder, para mantê-lo ou conquistá-lo. Estas constituem os fatos geradores das notícias.
Entre amigos ou inimigos, porém, jornalistas e políticos se apegam a odores vocalizados para adequar os fatos a discursos nem sempre modulados pela responsabilidade profissional.
O Brasil dos últimos tempos, de Dilma ao Bolsonaro, expandiu a presença de comentaristas e pretensos juízes da moralidade alheia e da conduta dos adversários ou inimigos políticos. Se é que é possível qualificar um opositor de inimigo no ambiente da normalidade institucional. O inimigo, ou aquele a quem se nega a amizade, se torna alvo dos insultos mortais.
Aí, a diferença. No mundo das relações pessoais, a amizade compreende a inimizade. Os opostos. No mundo das relações políticas, os interesses forjam consensos ou dissensos. Interesses coletivos contrariados levam à guerra, se não houver a diplomacia ou a política.
Entre amigos ou inimigos, porém, jornalistas e políticos se apegam a odores vocalizados para adequar os fatos a discursos nem sempre modulados pela responsabilidade profissional. A elaboração de infinitos comentários nos veículos jornalísticos convencionais, em especial nas emissoras de rádio e televisão, ou mesmo nos seus apêndices digitais, portais, sites e blogs, mais escondem do que revelam. Muitas vezes evidenciam a ignorância sobre os fatos da história política do País. Como, por exemplo, negar a herança do regime militar, que gerou quase duas décadas perdidas, 1980 e 1990, após o estertor.
Desde então, as tentativas de erguer uma sociedade conforme os ditames internacionais de civilidade são barradas pela cultura econômica da concentração de renda. Pois a vergonhosa desigualdade socioeconômica no Brasil acentua os conflitos que parecem nunca ser superados. Muitos afirmam que o maior desafio do País é a desigualdade e não a corrupção, feito que não é monopolizado por qualquer classe social. Mas muito mais volumosa nas classes abastadas. Jornalistas e jornais nem sempre modulam o volume da pauta por esse cenário.
O avanço acelerado da covid-19 amplifica abusivamente o contraste entre os 1% da população, pouco mais de dois milhões de habitantes, que detém 25% ou ¼ da renda total do País, algo em torno de R$ 1,6 trilhão de uma renda bruta nacional que chega a R$ 6,3 trilhões. Esses valores tendem a ser agravados pela crise e pela depressão econômica desenhada neste ano da peste, 2020.
Se os jornais abordam as causas e os efeitos do novo coronavírus, em tempos outros a descarada concentração de renda era normalizada num noticiário enaltecedor de um certo liberalismo ou neoliberalismo. Mesmo os programas sociais e de desenvolvimento adotados desde a década de 1990 não conseguiram acelerar ou tornar eficiente a distribuição de renda. Dados mais recentes publicados pelo Banco Mundial registram uma indecência: “os 5% mais ricos da população brasileira recebem por mês o mesmo que os demais 95% juntos.” Em números brutos, significa que 10 milhões de brasileiros ganham o equivalente a 190 milhões de compatriotas. Desses, cerca de 55 milhões vivem ou sobrevivem na linha da pobreza e metade deles na extrema pobreza. E desses brasileiros que vivem nessa dimensão socioeconômica, 75% são pardos e negros. Abaixo da linha de pobreza significa sobreviver com R$ 420,00 por mês.
A covid-19, em termos comparativos, faz cócegas perto desses números que insistem em se manter acomodados. São números de uma realidade que não encontra governos que a enfrente para, até mesmo, ampliar o número de consumidores e de indivíduos na classe média do tão incensado capitalismo por tantos jornais e jornalistas.
Otimistas – No emaranhado de números cruéis, evidencia-se o cinismo entre os comentaristas ou jornalistas que se afirmam otimistas. Esperançosos alienados que vomitam frases feitas ou clichês fraudulentos sobre o futuro maravilhoso que circula na voz de quem se tornou insensível à ácida realidade do País.
Apegar-se à esperança é condição de quem enfrenta uma realidade agourenta. No Brasil, jornalistas que discursam sobre o otimismo (o tal, “eu sou otimista”) revelam um cinismo quem nem Macunaíma pretendia.
Paulo Francis foi um dos poucos jornalistas que nunca adotou o otimismo como mantra para tratar das agruras do brasileiro. Como uns poucos que não se deixam embalar pelo discurso predominante dos ricos que detêm o controle dos meios de comunicação, mas, agora, afetados pelas ousadas e indomáveis redes sociais.
Jornalistas e políticos integram uma dimensão na qual o discurso é a ferramenta comum, mas embalados com éticas e interesses distintos. Ouvir um jornalista apregoar otimismo é indefensável. Já o político, em especial alguém que carrega o atributo do carisma, depende da pedagogia da esperança, sem a qual não consegue nem mesmo se eleger.
Apegar-se à esperança é condição de quem enfrenta uma realidade agourenta. No Brasil, jornalistas que discursam sobre o otimismo (o tal, “eu sou otimista”) revelam um cinismo quem nem Macunaíma pretendia. Mesmo porque, a mediocridade otimista rejeita qualquer vácuo social. E nele se impõe como um puto virginal.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito
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