Quando a arte nos salva de nós mesmos
Por Carlota Cafiero
Fui uma adolescente solitária e cheia de complexos, alguns típicos da idade. Magra além da conta, míope até demais, cresci num condomínio cheio de jovens que, chegado o fim de semana, me deixavam sozinha nas noites de sexta e sábado. Era quando eles saíam para curtir as boates da moda, no início dos anos 1990. Meus pais não me deixavam ir junto.
Eu tinha 16 anos. Tinha mãe e pai, dois irmãos, um cachorro, um canário e uma vida confortável, mas nunca tinha beijado. Ficava lendo, escrevendo, desenhando (fazia retratos muito bons) e escutando rock no quarto. Era época do Grunge, movimento musical surgido em Seattle, nos EUA, e a minha balada era animada por bandas como Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden, Alice in Chains, TAD, Mudhoney.
Mas eu não me sentia totalmente só. A literatura ajudava-me a resolver muitas questões internas. Autores como Roberto Freire (o romancista, cronista, novelista, teatrólogo e psicanalista somático e anarquista), Jack Kerouac, Carlos Castañeda, Virgínia Wolf, Oscar Wilde, Gustave Flaubert, Clarice Lispector, Hermann Hesse, Jack London. “Qual é a sua estrada, homem? A estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa?”, provocava Kerouac.
Então, quando os meus amigos saíam para as boates, eu também me arrumava, mas para assistir a uma peça, um vernissage, um concerto. Para ali os meus pais me deixavam ir, mesmo que sozinha.
Decidi que a minha estrada seria diferente. Os livros me levaram a querer saber mais e a me diferenciar pelo conhecimento. Um conhecimento que passei a experienciar num espaço de arte perto de casa: o Centro de Convivência Cultural (CCC), um gigante de cimento e concreto no meio de uma praça arborizada.
Com arquitetura arrojada de Fábio Penteado, o espaço inaugurado em 1976 ainda existe, mas está decadente. É composto de teatro de arena para 5 mil pessoas (detalhe de sua arquibancada, na foto), teatro interno para 500 espectadores, galerias de arte e uma sala para música de câmara. Então, quando os meus amigos saíam para as boates, eu também me arrumava, mas para assistir a uma peça, um vernissage, um concerto. Para ali os meus pais me deixavam ir, mesmo que sozinha.
Eu adorava aquele ambiente. Foi na arena do CCC que assisti, duas vezes, à cantata Carmina Burana, de Carl Orff, com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas e o CORALUSP. Numa das apresentações, deitei-me na arquibancada mais alta para mirar a Lua cheia, enquanto um solista cantava em latim: “O Fortuna/ Velut Luna/ Statu variabilis/ Semper crescis / Aut decrescis/ Vita detestabilis/ Nunc obdurat / Et tunc Curat” (“Ó Sorte/ És como a Lua/ Mutável/ Sempre aumentas/ Ou diminuis/ A detestável vida/ Ora oprime/ E ora cura”).
Em 1993, também foi marcante a peça Werther, do grupo Teatro dos Benditos Malditos, com atores da Unicamp. Era uma montagem ousada, baseada no romance mais conhecido do alemão Goethe, cuja personagem tinha o mesmo nome que eu, e pela qual o protagonista nutria amor platônico. Um amor tão intenso que o consumiu até a morte.
Nas galerias de arte do CCC, conheci as criações dos principais artistas visuais de Campinas, precursores da vanguarda na Cidade, como Bernardo Caro, Thomaz Perina, Maria Helena Motta Paes, Mário Bueno, Francisco Biojone, entre outros, sobre os quais eu escreveria muitas vezes para o caderno de cultura do principal jornal da região.
A arte ajudou a curar meus complexos. Naquele chão sagrado do CCC, defini o que eu queria para a vida: escrever sobre esse ‘remédio’ intelectual, um remédio sem restrições médicas e cujo efeito colateral é nos desacomodar. Por causa daquele lugar, eu me tornei jornalista cultural.
Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.
Ilustração: Foto do Teatro de Arena Centro de Convivência Cultural Campinas - do site República de Campinas.
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