O tempo do artista
Por Carlota Cafiero
Certas reportagens e entrevistas marcam a gente, não pela agudeza dos fatos ou acontecimentos, mas pela sutileza dos ensinamentos. Como repórter de Cultura, entrevistar sempre foi a parte mais interessante do processo da reportagem. Porque é o momento em que eu posso acessar a técnica, a ética, a estética e a poética da criação ou do ato criativo de cada entrevistado. Afinal, o que move aquele artista para se expressar daquela maneira, com aquela paleta de cores, aquelas formas, aquelas palavras, aqueles ritmos, com aqueles instrumentos?
Entrevista é o encontro de sujeitos, de vontades. Eu sempre encarei a esse momento como um ato recíproco de generosidade. Em meus quase 25 anos de jornalismo, nunca acessei a casa, a intimidade ou o tempo do entrevistado com desdém ou como uma obrigação. Apesar de ter sido paga para realizar aquele trabalho, eu me dedicava à entrevista com a missão de ajudar o artista a comunicar sobre o seu trabalho e a inseri-lo num contexto cultural da Cidade e do País, e o leitor a se informar e a se formar como cidadão pensante e atuante na sociedade.
Esse entróito, é para, afinal, relembrar um entrevistado muito especial, a quem tive o privilégio de acessar várias vezes durante o tempo em que fui repórter do jornal Correio Popular, em Campinas, entre 2000 e 2009: o artista visual e educador Francisco Biojone (1934-2018). Era com grande prazer que eu o visitava em seu ateliê, perto do jardim Campos Elíseos e, depois, no Centro de Campinas, para vê-lo pintando ou revelando os seus arquivos de telas enfileiradas em grandes prateleiras e aquarelas em gavetas enormes.
Francisco Biojone: artista visual e educador
Eu me sentava em um banquinho e fazia uma pergunta ou outra, mais observando e escutando. Gostava de ouvi-lo refletir sobre arte, o meio e o mercado, as vanguardas, as exposições, as dores e as delícias de ser artista e de viver de arte no Brasil, sempre com falas lúcidas, sem devaneios, tais como: “Meu tempo é hoje”; “As melhores obras são aquelas que ainda vou fazer”; “Nós, este é o espírito da arte” (evocando sua participação em coletivos de arte, como o famoso grupo Vanguarda – 1958-1966); e “O trabalho do artista é como outro qualquer, com hora para começar e terminar, com disciplina e dedicação diárias”.
Foi observando Biojone a trabalhar, no alto dos seus 66 anos de idade, que escrevi parágrafos como este, para o catálogo de 2009: “As formas e as linhas são apenas sugeridas na fluidez da tinta fartamente espalhada sobre a tela. Do embate entre o concreto, o abstrato e o figurativo, a paisagem se dilui e se transforma constantemente na obra de Biojone”.
E foi numa entrevista com o pintor que aprendi uma lição importante: a de que uma determinada obra demora o tempo do artista, pois resulta de tudo aquilo que o autor fez, leu, estudou, viajou, viveu, amou, ganhou, perdeu, sofreu. Enfim, a resposta que Biojone me deu ao ser perguntado sobre quanto tempo ele levava para terminar uma tela de grandes dimensões foi: “Cinquenta anos”. Pois este era o seu tempo de carreira àquela altura. Então, a tela produzida era produto de todo aquele tempo, de toda aquela dedicação.
Adotei esse pensamento ao responder sobre quanto tempo eu levava para escrever um texto, fosse para reportagem ou um release: 20 anos, que era o meu tempo de formada em Jornalismo. E era sobre duas décadas de atuação que eu me baseava na hora de dar o preço do meu trabalho para um possível cliente.
A ideia de escrever sobre Francisco Biojone para a URRO! é, além de lembrar uma fase muito feliz da minha trajetória, também saudar o importante trabalho realizado pelo curador e pesquisador Fábio Luchiari, grande admirador e colaborador de Biojone, que reuniu a obra e a vida do pintor no belíssimo volume “Biojone – Lembranças”, de 2021, pela editora Ipsis – Pub.
Eu já morava em Santos quando fui presenteada, via Correios, por esta edição de luxo, capa dura e ricamente ilustrada a cores com as obras em telas e em papel, e fotos do artista e de sua família, num mapeamento de seis décadas de produção e oito décadas de vida.
Trata-se de um compêndio de 270 páginas, bilíngue (português-inglês), que teve início em 2015. Durante um período, o biografado pôde acompanhar e colaborar com o conteúdo, até sua morte, em 2018, aos 81 anos. Luchiari escreve que Biojone não perdeu o entusiasmo em produzir diariamente, mesmo abalado pela perda prematura de seu filho, o fotógrafo Rodrigo, em 2011. “Religiosamente ia ao ateliê para pintar ou mesmo para organizar suas coisas, receber os amigos e interessados em adquirir as obras.”
O livro reúne texto de Sônia Aparecida Fardin, responsável pela cronologia minuciosa, de 1934 a 2019, com todas as exposições, salões de arte, viagens e prêmios recebidos pelo artista. Para a amiga Sônia, Biojone “foi um dos artistas campineiros que mais expandiu sua obra para além dos círculos regionais, com participações em salões nacionais e em várias capitais brasileiras, tais como exposições em centros de arte na China, nos Estados Unidos, na França, na Itália, no México e em Portugal. Recebeu prêmios importantes desde seus primeiros anos de inserção no circuito nacional das artes visuais, manteve-se ativo até poucos meses antes do falecimento”.
Também traz texto da historiadora da arte Regina Teixeira de Barros, sobre a trajetória do artista, com quem teve o primeiro contato em 2015, para uma pesquisa sobre o Prêmio Leirner de Arte Contemporânea e a Galeria de Arte da Folha, na qual Biojone teve quatro participações.
Ao final do livro, há textos selecionados de catálogos de exposições de arte, como a intitulada “Nós”, na qual Biojone expôs com Pedro Manuel-Gismondi, em 2011, na cidade de Ribeirão Preto. O catálogo trouxe artigo de minha autoria, no qual eu registrei:
“Muito se escreveu sobre a materialidade, a espacialidade, as cores e a luminosidade na obra de Francisco Biojone, mas as palavras podem ser mais traiçoeiras do que a tinta úmida sobre a tela. O próprio artista não se arrisca a definições e parece se surpreender com os esforços de apreensão de sua obra. Definir a obra de Biojone é tentar guardar um raio der sol”.
O livro “Biojone – Lembranças”, de 2021, pela editora Ipsis – Pub, está a venda na Livraria Pontes em Campinas
Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.
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