Certezas que enganam
Por Carlota Cafiero
Uma imagem icônica da abertura das Olimpíadas em Paris fez muitas pessoas enxergarem o que queriam ver, ou, o que sabiam ver – o que vemos depende, quase que exclusivamente, da nossa formação cultural. Pois, se crescemos muito mais expostos a reproduções da pintura “A Última Ceia” (1498), de Leonardo Da Vinci, do que a de “A Festa dos Deuses” (1640), de Jan Van Bijlert, claro que seremos conduzidos, por pré-conceitos, a enxergar, na representação do banquete dos deuses gregos do Olimpo, uma paródia ou sátira à Santa Ceia de Jesus.
"A Festa dos Deuses", pintura de Jan Van Bijlert
Porém, vou me retirar deste debate que só parece reacender a fogueira do fundamentalismo, levando pessoas ora pacíficas a desejar a morte, a violência e até o estupro corretivo de mulheres lésbicas – num paradoxo à mensagem de Jesus, que jantava com mendigos, prostitutas, gentios, e tinha como seguidora uma mulher da qual Ele expulsou nada menos do que sete demônios. E foi esse amor incondicional ao próximo – pelo qual Jesus reforma a idéia do Deus vingativo do Velho Testamento - que provocou a ira do chamado povo de Deus, o que nos leva crer que, se Jesus voltasse, poderia tranquilamente dividir o pão e o vinho entre drag queens.
Enfim, mas eu não vou escrever sobre esse episódio recente da nossa história, que revela o retrocesso cultural da mentalidade contemporânea, pois de que adianta falar de amor num período cheio de ódio e certezas baseadas em notícias falsas?
Então, que fique claro: no centro da cena da performance apresentada em Paris, a mulher com a auréola não representa Jesus, mas o deus grego Apolo, que na pintura de Bijlert também aparece com um halo de luz no alto da cabeça. Nas artes visuais, figuras humanas são representadas com auréolas desde o Egito antigo, reforçando o caráter divino ou iluminado do personagem retratado. Não bastasse, surge ainda a figura do deus do prazer e do vinho, Dionísio (para os gregos antigos) e Baco (na Roma antiga), prova de que a encenação bebia na fonte da cultura greco-romana.
Ainda assim, no mesmo dia, perfis com milhares ou milhões de seguidores nas redes sociais, incluindo a imprensa, reforçaram a ideia de que a performance trazia referências à Santa Ceia – o que foi desmentido pelo diretor artístico, Thomas Jolly -, mas o estrago já estava feito, com o compartilhamento massivo de uma montagem fotográfica da apresentação em Paris colada logo acima da Santa Ceia de Da Vinci, com a pergunta: “O que você acha disso?”, sem contextualização, induzindo as pessoas a concluírem de que o cerne da fé cristã fora vilipendiado pelos franceses.
Fosse a foto da ceia pagã divulgada juntamente com a reprodução de “A Festa dos Deuses”, não haveria incompreensão, dado que a grande maioria desconhece a obra que está exposta na França, no Museu Magnin. Porém, o diretor e os participantes da encenação estão recebendo ameaças de morte e outras barbaridades, o que nos leva a imaginar Jesus repetindo: “Pai, perdoa‑lhes, pois não sabem o que fazem”.
Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.
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