Iumna: poesia ruim, sociedade pior
Por Daniel Costa
Cabe perguntar, faz sentido ainda se perguntar se a poesia é boa ou ruim? Não bastaria considerar que os poemas, aos montes por aí, possam apenas ser gostados por quem deles couber gostar?
Perguntar se a poesia é boa ou ruim, tentar regular isso, para além do gosto pessoal de cada um, não seria um mal jeito herdado de antigas prepotências acadêmicas?
Essas questões estão diretamente relacionadas à discussão proposta por Iumna Maria Simon e que poderia ser esticada da seguinte forma: as coisas da cultura, em geral, e a poesia, em específico, estão aí para serem curtidas por cada um ou existe algo mais em jogo?
Vem à cabeça, assim, a varejo, aquela única frase que Alfredo Bosi, um suspeito acadêmico das antigas, insinua em seu livro sobre poesia, no capítulo sobre poesia e resistência: “essa forma insinuante de ideologia que se chama ‘gosto’”.
Ideologia. Portanto, política.
As reflexões que estão sendo consideradas aqui foram formuladas por Iumna Simon nos anos 80, tinham como objeto a Poesia Marginal: Leminsky, Ana Cristina Cézar, Torquato Neto, Chacal, entre outros.
Ela olha especificamente para a poesia que chega a esse momento em que o país experimenta os efeitos dilacerantes de 20 anos de ditadura militar, ajuste recessivo, urbanização caótica e o fim de suas aspirações industrializantes.
Considera fazer juízo sobre o que é escrito, face ao mundo em que se escreve vive.
Isso significa considerar que as condições de vida afetam a produção (da poesia). Pensar as condições de vida, como manda a boa tradição marxista, significa pensar os dilemas da nossa História e, para finalidade aqui proposta, como esses dilemas se correspondem com a organização e os trabalhos da cultura.
Pensar essas circunstâncias é pensar as transformações do capitalismo que se generalizaram ao ponto de romper a pertinência moderna do modernismo e que colocaram em vigência o regime pós-moderno, que, é possível argumentar, ainda regula nossa vida social.
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Pós-modernidade é um conceito abrangente. Se contrapõe ao também enorme conceito de Modernidade.
Meu Dicionário de Filosofia, dirigido por Thomas Mautner (Edições 70), comenta no verbete:
“(...) Segue-se que as expressões ‘pós-moderno’ e ‘pós-modernismo’ podem significar muitas coisas diferentes, e um autor que desejar ser entendido deverá explicar o sentido pretendido. Esta precaução é frequentemente negligenciada. Muitos autores começam por admitir que não têm uma definição clara de pós-modernismo e que não é claro o que é abrangido pelo termo, mas depois passam a celebrá-lo intensamente – um procedimento curioso (...)”.
Tentemos reagir.
No caso de Iumna, o conceito é recolhido das contribuições de Fredric Jameson, crítico literário norte-americano.
Nos termos dele, pós-modernismo é o conceito que liga transformações na ordem econômica capitalista e a emergência de novos atributos culturais a partir dos anos 60. Designa o regime cultural específico do capitalismo tal como ele vai se organizando através de processos como o neocolonialismo, a mundialização das finanças, a revolução verde, a terceira revolução industrial.
Resumiria, de minha parte: o regime cultural do capitalismo em sua fase neoliberal.
Dois efeitos gerais sobre a cultura são observados e atribuídos a essas transformações.
Por um lado, uma reação negativa ao acervo da modernidade, aos trabalhos que se referiram e deram elaboração aos dilemas e contradições da sociedade burguesa entre a segunda parte século XIX e primeira do XX.
Os repertórios que se estabeleceram e se institucionalizaram em cânones através de museus, fundações, universidades, passam a ser encarados como forças tão hegemônicas quanto insuficientes e constrangedoras para atualização da cultura.
Por outro lado, ele observa uma erosão entre as fronteiras que discriminam
diferentes gêneros do discurso, do saber, da arte. Entre a literatura, a história, a filosofia. Entre a arte e a propaganda. Entre cultura erudita e popular.
Essas tendências de negação se resolveriam na incorporação crescente da vida cultural ao funcionamento de um mercado de consumo de massas. O pastiche e a perda de temporalidade seriam condições assumidas pelos saberes e artes conforme fossem pleiteando o funcionamento de mercadoria.
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Os anos 70 e 80 no Brasil são um momento crucial de nossa História. A ditadura militar se endurecia e desmontava ainda mais elementos republicanos do Estado Nacional. A dívida externa se aprofundava sob o choque dos juros e do petróleo.
Os processos de expansão urbana, êxodo rural e ampliação do emprego com baixos salários assinalavam que o processo de industrialização, que vinha se constituindo desde os anos 30, começava a mostrar seus limites sem ter cumprido suas promessas de integração social.
O argumento de Iumna Simon é que esse momento de interdição do projeto de nação, e impossibilidade de uma alternativa, acaba por retirar a referência nacional do campo cultural.
No contexto de uma sociedade que contempla a falência de suas aspirações modernas, a cultura, reage, também, em contradição com suas aspirações modernistas sem que possa substituí-la por outros recursos programáticos.
É a partir desse momento que ela interpreta a emergência das características típicas da pós-modernidade.
Por um lado, há um recolhimento – pilhagem, nos termos dela – dos recursos elaborados pelos modernistas no início do século XX para atualizar a linguagem poética às demandas do processo social brasileiro: o humor, o coloquialismo, a espontaneidade etc. No entanto, empregam esses instrumentos em contexto histórico oposto ao que foram elaborados.
Poderíamos apontar aqui as preocupações de Jameson relacionadas ao pastiche e à crise de temporalidade.
Por outro lado, ela observa uma concentração poética na representação da experiência imediata, da irreverência e da rebeldia jovem como formas de enfrentar as tragédias de um país incapaz de elaborar um destino alternativo à história de suas desigualdades e violências.
Nesse sentido, argumenta que a poesia convencionaliza os procedimentos tradicionais do modernismo ao mesmo tempo em que abre mão de enfrentar os dilemas históricos de seu próprio tempo:
“(...) se o modernismo está em toda parte, as condições histórico‑sociais que o possibilitaram não só não são mais as mesmas, como se alteraram radicalmente. A arte moderna se institucionalizou e em larga medida se reconciliou com a sociedade, isto é, se reconciliou sob a forma‑mercadoria, enquanto os adversários pré-modernos saíram de cena. (...) Digamos que a poesia moderna no Brasil reina, mas não governa. Ela pode oferecer os modelos do que é grandeza, experimentação, risco, língua, em que todos se espelham e de que ainda se beneficiam, mas isto conta pouco numa cultura e numa sociedade que funcionam noutro diapasão, em que a mediocridade e o convencionalismo se reformaram em escala inimaginável.” (SIMON, I. 2012).
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As reflexões propostas por Iumna Simon se referem às origens de uma circunstância histórica que hoje, argumento, experimentamos radicalizada.
Antes da pandemia, ainda em 2019, organismos internacionais já descreviam uma crise profunda e de alcance global.
A América Latina registrava a menor média quinquenal de crescimento econômico em 70 anos. Não por acaso, foram nesses anos que vimos as formas mais autoritárias de política ganharem espaço.
O Brasil e os demais países que foram reformados para servir à globalização, no início dos anos 90, agora experimentam essa crise levando suas formas de serviço às últimas consequências.
Os Estados se concentram intransigentemente em garantir trânsito às finanças internacionais, o que significa garantir que formas locais de riqueza tenham conversibilidade em moedas globais. Quando isso acontece, todos os jeitos de viver se tornam mais precários. Todos os avanços sobre a natureza se tornam mais violentos. E as divergências passam a ser representadas como ameaça à nação.
Hoje, temos uma economia que normaliza uma nova grandeza de desemprego e uma condição de trabalho mais precária. A erosão de direitos humanos, civis e da seguridade social, restringe o acesso à política como forma de decidir o presente.
A sociedade nos dá uma baita crise, mas não socializa meios e organizações para situarmos o seu sentido. Estamos em calote de consciência, por assim dizer. Estamos experimentando, num período historicamente muito curto, uma mudança trágica nas condições gerais em que a vida acontece.
Extrapolando a consciência de crise histórica para além das circunstâncias analisadas por Simon, observando o nosso próprio tempo como um momento de crise com nossa própria história enquanto país, poderíamos retomar seus questionamentos?
Seria possível considerar a produção poética atual – com sua orientação ao experimentado, ao subjetivismo, à propaganda de seu gênero, à promoção de autorie, seus tipos, imitações – como um novo ciclo de absorção da cultura pelas formas de consumo de massa? Da incorporação a uma lógica de mercadoria que tem nas redes sociais o seu mercado preferencial de circulação?
Ou ainda, consideraríamos a sociedade numa crise de proporções tão graves que a cultura, a partir da poesia, tem se mostrado incapaz de reagir a esses dilemas e se recolhe às formas imediatas de consumo e identificação?
A poesia atual nos ofereceria a curtição e a referência porque somos uma sociedade incapaz de imaginar, sem cinismo, uma transformação verdadeira de nossa História?
Bibliografia
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. Editora Cultrix. 1977.
JAMESON, F. Postmodernism and consumer society. In: The anti-aesthetic: Essays on postmodern culture. 1983.
SIMON, I. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. In: Novos Estudos (5). 1999.
______. DANTAS, V. Poesia ruim, sociedade pior. In: Remate de Males (7). 1987.
______. DANTAS, V. Um poema de Carlito Azevedo em seus problemas. Novos estudos CEBRAP (91). 2011.
______. Retradicionalização frívola: o caso da poesia. In: Cerrados (39). 2015.
______. Tentativa de balanço (entrevista). In: Novos Estudos (94). 2012.
YOKOZAWA, S. Razões de um desconforto: notas a propósito de dois artigos sobre poesia brasileira contemporânea e tradição. In: Texto Poético (v. 8, n. 13). 2012.
Daniel Costa é poeta.
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