Silviano Santiago: escrever é escrever contra
Por Daniel Costa
No final da década de 1970, o mineiro, hoje com 86 anos, publica uma coletânea de ensaios sobre a cultura, em geral, e a literatura, em específico, que se tornaram um marco de nosso pensamento social: “Uma literatura nos trópicos” (1978).
Silviano Santiago. Foto: Márcia Kranz/CB/D.A Press
A discussão realizada pelo autor se aproxima da que faz Roberto Retamar, comentado na coluna passada, na medida em que ambos estão pensando a cultura latinoamericana sob um viés decolonial. Quer dizer: pensam que a origem colonial de nossos países cria um impasse que não é superado com o passar do tempo, não se desfaz com acúmulo de progresso, ao contrário, vai se atualizando na formação de cada época até o presente.
O Santiago é um teórico pós-estruturalista. Ele recolhe suas armas a partir das críticas feitas ao estruturalismo, algo enorme como a modernidade, enorme como o romantismo, um sistema de pensamento cuja formação tem momentos decisivos na filosofia da história de Marx, na linguística de Saussure, na antropologia de Levi-Strauss, e que — perdoem o resumo — propõe não ser possível entender uma coisa só com o que ela carrega, é preciso entendê-la nas coisas em que ela é carregada.
Para pensar a cultura, Silviano se apoia bastante num filósofo chamado Jacques Derrida, nascido na Argélia, e que é um formulador do Desconstrutivismo.
Meu dicionário de filosofia (Thomas Mautner) é meio des-desconstruidão. Quando fui procurar o verbete “desconstrução”, constava ao fim um comentário sobre o uso dessa palavra no dia a dia de hoje: “uma praga pretensiosa e mistificadora da paisagem intelectual”.
De qualquer forma, aqui segue outro desses resumos que ninguém que faz se sente adequade ao fazer: a contribuição de Derrida propõe devolver ao campo da linguagem e do discurso aquelas coisas que o pensamento ocidental vira e mexe pretende exportar diretamente à realidade para recolhê-los de volta como fonte de significado e autoridade.
Cito, como um resumo mais brejeiro, aquilo que o senso comum destilou dos ares pós-modernos para uso cotidiano: “cada um tem a sua verdade”.
Silviano Santiago é um autor potente e o lugar que escolhe ocupar no estudo da cultura é da crítica a uma vertente que passa por autories como Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz e outres.
Uma vertente que faz corresponder os impasses da história nacional, as escolas literárias e es autories. Vertente que — pretendo aqui comunicar o mal-estar de Santiago, se o compreendi bem — detecta na insuficiência dos processos históricos de formação, a insuficiência correspondente de nosses escritories.
A guinada de Santiago é, ao se preocupar em enfrentar o imperialismo na cultura, se deslocar dos problemas de formação como questão de fundo, para deslocar o debate à questão da inserção cultural.
A pergunta é: qual a diferença possível para as coisas da cultura em países marcados pela dependência?
Na ideia de Silviano Santiago, a colonização conta para se compreender a atualidade, não só como um passado, mas como coisa da ordem do dia que é preciso identificar e reagir.
Ele cita, no principal ensaio de Uma Literatura nos Trópicos, “O entre-lugar do discurso latinoamericano”, uma frase de Levi-Strauss que pára-raia muito de sua pauta: “os trópicos são menos exóticos que démodés” (fora de moda).
Essa atualidade do problema colonial está presente quando a gente para pra pensar sobre se modernizar, esse sentimento de atualização, de galgar o atraso com o presente, de chegar ao hoje em dia de como as coisas são possíveis.
Onde começa a modernização e quem corre atrás dela?
Aqui o palpite central: o atraso não é uma questão de tempo, é um impasse social daquilo que está engajado em relações do tipo metrópole-colônia, imperialismo-dependência, centro-periferia, primeiro mundo-terceiro mundo, desenvolvidos-subdesenvolvidos, avançado-primitivo, civilização-barbárie.
Essas coisas se referem tudo a uma geopolítica da cultura: o acontecimento da modernidade vai se refazendo, mas ele tem um lugar no mapa.
A origem dessa organização das coisas é o processo de colonização que se desencadeia na virada dos séculos XV e XVI.
Especificamente comentando o Brasil, o Silviano argumenta que a colonização cria um problema de origem perdida porque a violência contra es indígenas combina extermínio de povos, exclusividade de religião e exclusividade de língua.
O genocídio indígena envolve os sobreviventes ao generalizar, como os dois lados da mesma moeda, o código religioso católico e o código linguístico do português, o que interdita o acesso indígena à memória de sua origem: seu sistema sagrado e sua língua.
Essa unidade que se impõe com a colonização — uma só língua, um só deus, um só rei — é um efeito amarrado à perda da origem. Perdida a origem, a unidade coloca o problema da originalidade, da cópia e da moda na medida em que pretende denominar toda vida nesses territórios sob a mesma civilização.
O dilema da diversidade dentro da unidade cria negação de contemporaneidade. Es conquistades não estão no tempo atual dos povos europeus que conquistam: são es primitives, no registro da colonização, ou fora de moda, no registro da dependência.
Numa situação de origem perdida, o que dá pra fazer é subverter a unidade através do pensamento mestiço: impurificar os códigos-chave da cultura, religião e língua.
A adesão dócil ao modelo, a cópia sem corrupção produz duas coisas. Primeiro, nos retrocede na temporalidade na medida em que buscamos a todo momento nos enquadrar para somente nos enquadrarmos fora da moda. Segundo, produz o silêncio, porque desaparecemos por analogia.
Nesse sentido, ele imagina que a geografia latinoamericana deve ser de assimilação e agressão, aprendizagem e reação, a contribuição da América Latina é encarar aquilo que metropolitanos ou imperialistas tentam generalizar como modelo cultural e destruir a ideologia de pureza e unidade.
Inventar a diferença.
Do derridês: “différance”, coisa que o Derrida insistia que não é nem uma palavra nem um conceito, mas um sei-lá-eu-o-quê-então que joga para duvidar de origens indubitáveis, pontos de partidas absolutos e misturar tempos, misturar espaços, resistir a margens, confundir para contar outra coisa.
O Silviano resume o juízo: “Fala, escrever, significa: falar contra, escrever contra”.
Essa apreciação crítica ao problema da cultura permite fazer considerações ao proceder des escritories latinoamericanes.
Todo trabalho de escrita ocorreria como luta para criar relevo em um contexto de intertextualidade. Em luta contra a invisibilização:
“O imaginário, no espaço do neocolonialismo, não pode ser mais o da ignorância ou da ingenuidade, nutrido por uma manipulação simplista dos dados oferecidos pela experiência imediata do autor, mas se afirmaria mais e mais como uma escritura sobre outra escritura.” (O entre-lugar do discurso latinoamericano).
Quem escreve é primeiro alguém que lê.
A condição dessa leitura é típica de países de culturas dominadas: são leitories que procuram encarar acervos buscando uma distração no fechamento dos clássicos.
Estão em busca de um modelo de texto escrevível. Isto é, procuram mobilizar, junto àquilo tudo que es circula, alguma aderência com os motivos de seu próprio trabalho, algo para dar na elaboração de um modo de organizar a própria escrita.
Estaríamos falando, se falássemos de música, por exemplo, do que o MC Fioti fez com a Partita em Lá Menor, de Bach, em Bum Bum Tam Tam: agredir um modelo para fazer ceder as fundações que o propõem como único e absoluto.
O que a perspectiva de Silviano Santiago tenta modificar é uma tradição da crítica cultural e literária de escrutinar as obras geradas nos países dependentes em busca das fontes e influências das metrópoles culturais. Uma tradição de escrutinar as obras em busca das igualdades, das coincidências, das dívidas que es artistas tiveram de contrair junto aos modelos metropolitanos.
Ao contrário, a atenção deve recair sobre a produção da diferença, sobre o reconhecimento do novo que é produzido quando es artistas latinoamericanos atacam os modelos generalizados pelas metrópoles.
Isso é importante porque rompe o etnocentrismo difundido pelas relações coloniais, esse jeito de se definir a experiência cultural ocidental como ponto de vista que relativiza todas as outras.
As contribuições de Silviano Santiago ajudam a olhar com apreço e a defender a aparição de obras e artistas que exploram esse entre-lugar do dualismo colonial: nem original, nem cópia, mas transgressorie.
As abordagens tradicionais acerca da literatura brasileira, abertamente contrapostas por Silviano, tendem a interpretar a cultura a partir da suficiência das obras frente às configurações historicamente específicas da dependência. Tentam corresponder dialeticamente: a) os impasses que cada momento da história reserva ao país, e b) as formas socialmente selecionadas de manifestação cultural.
Não quer dizer que essa tradição esteja avaliando de que forma a arte e a cultura estão contribuindo para a solução desses impasses, mas sim — na sua melhor versão, opino — de que forma arte e cultura foram capazes de se referir à crise de seu tempo.
Toda a preocupação realmente parece presidida pelo tema da formação nacional, dos descaminhos na integração do país consigo mesmo desde a saída da colonização.
Atualmente, essa pauta irrecusável do século XX foi colocada em xeque. Como referir os dilemas da cultura em países que parecem se desfazer ao serem absorvidos no capitalismo globalizante do século XXI?
Embora seja uma produção já antiga, Silviano Santiago propõe um esquema que dá lugar legítimo ao trabalho de artistas cuja geração assiste o fim de tarde dos sonhos nacionais que os precederam.
Não o lugar da síntese dialética, mas o entre-lugar desses tempos e espaços. Reconhece a pertinência desses esforços, os recolhe para nomeá-los como parte legítima da cultura e, portanto, apresenta-os.
Já Roberto Retamar, portador de preocupações similares, argumentei no início, tem o mérito, a meu ver, de colocar a questão racial no centro das tarefas culturais da América Latina. Coloca, ao mesmo tempo, o conflito de classes no centro da violência racial dos países de origem colonial.
Bibliografia
Silviano Santiago: “Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural” (1978).
Silviano Santiago (Org): “Glossário de Derrida” (1976).
Silviano Santiago: entrevista publicada na revista Remate de Males v.38, n.1, jan-jun, (2018).
Revista Aletria: Dossiê “40 Anos de Uma Literatura nos Trópicos: ‘Entre-Lugar’, ‘Cosmopolitismo’, ‘Inserção.’” (2020).
Daniel Costa é poeta.
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