É preciso não dar de comer aos urubus
Vira e mexe a barra pesa. O ânimo rareia feito água no deserto, a falta de vontade inunda o corpo estático na cama e o desespero justifica o pecado diante da consciência pesada. Mesmo que seja só de fachada. Vira e mexe a barra abusa. O cartão não passa, a borracha dura da realidade reabre a chaga mal curada do sonho apodrecido e o coração, mesmo a contragosto, insiste em manter o seu ritmo. Sem contento ou consentimento do indivíduo.
Vira e mexe a barra arrebenta. A poesia fica entalada na garganta, o espetáculo acorrentado no peito e todas as possíveis obras, ainda invisíveis, viram poeira dinamitadas no breu de cada gente. A vida não dá trégua: arde, mata, esquece e sobra. Rapinas obscenas por “carne fresca” rasgam o céu. Preguiçosas e covardes, espreitam de cima o futuro defunto.
A predileção pela podridão não passa de comodismo. Obesos generais se recusam a caçar e delegam ao tempo e à sorte o esforço do serviço. Apenas observam, esperam: não possuem pressa ou exigência. Vivem apenas da incontrolável vontade de chafurdar na carniça a qualquer custo.
Creem no tempo, simplesmente.
Dá-se sempre tempo ao tempo. Mas e quanto aos tempos de escuridão? É possível dar mais tempo a tempos turvos? Nesses dias onde a única coisa que existe é o nada, onde a única resposta admitida é o não denso e amolado que rasga o couro fino para desembrulhar do fundo da carcaça um pobre e anêmico espírito.
Nesses malditos dias em que bicos afiados e sem piedade estraçalham feito bala de fuzil o pouco de nossa carne; é mesmo preciso dar um tempo para que a agonia se dissipe dolorosamente ou é preferível enfrentá-la nem que o peso de suas garras nos sufoque a coragem, nos arrebente os dentes?
Não sabemos ao certo. Seja por teimosia ou aptidão, o poeta aprende na marra a enfrentar o mundo de peito aberto, mesmo que ostente um coração partido. A cada verso, em cada texto, lutamos e buscamos a alegria que anda perdida pelas esquinas desse país banguela. Não levamos jeito para comer carne podre, e esperamos o banquete do gigante com a boca salivando revolta, cuspindo afronta e rimando coragem. De uma forma ou de outra, é preciso enfrentar o gosto pelo pútrido.
É preciso, como disse o poeta, não dar esperanças aos urubus. Fazer com que as negras aves, em seu mórbido malabarismo, não enxerguem mais futuros cadáveres e sim atuais inimigos. Não dar esperanças aos urubus, estejam eles onde estiverem: do lado de dentro ou de fora, subordinados ou no comando da coisa. Enfrentar com a vida da nossa carne, a vontade de morte do pássaro do novo mundo.
Não dar esperanças ou de comer aos urubus. É preciso estar junto, defendendo os mais suscetíveis, protegendo os nossos “moribundos”.
Se a nós é impossível chegar ao alto por falta das asas, a eles resta a fome caso não desçam ao chão. É preciso que haja o enfrentamento entre aqueles que não querem morrer e os que dependem dessas mortes para que possam viver. É preciso não dar sossego aos urubus.
Essa nova edição da URRO! não vem apenas para desafiar o coro dos contentes, mas também para afirmar, através de versos, fotos, vídeos e produções artísticas, que avida pode não ser fácil, mas continua bonita, bonita e bonita. Se o medo é uma imposição, a esperança e a insolência passam a ser um dever, e a plenos pulmões é preciso gritar em coro, tomar as ruas, erguer os punhos e tirar o sono e os sonhos dos malditos urubus.
Boa leitura a todos.
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