Câmara Escura
- URRO
- 3 de ago. de 2024
- 7 min de leitura
A era da manipulação fascista no audiovisual
Por Hamilton Rosa Jr.
Vivemos hoje em dia num presente de profusões de subtelas e microtelas, de afirmações inflamadas, cheias de equívocos e enganos, e muitas coisas ocultas que não se notam num primeiro olhar. E ainda assim, o que mais vemos na tela é um interlocutor afirmando que a verdade está sendo dita por ele.
O que filosoficamente é a verdade?
Vamos usar um filme de ficção para discorrer sobre o tema.

Cena de "A Vila": crença de uma figura medonha
Observem essa encenação que faz parte do filme “A Vila”, de N. Night Shyamalan. Aparentemente a atmosfera é de serenidade num almoço numa aldeia anglicana do século 19. Por traz desse cotidiano, no entanto, há uma crença numa figura medonha. Uma criatura desconhecida, que habita o bosque e não permite que os aldeões saiam daquele pequeno mundo em que nasceram. Não há como arredar o pé daqueles confins.
E, entretanto, essa história esconde uma mentira. A fronteira perigosa foi uma versão armada pelos fundadores daquela aldeia para manter o controle da massa. Os criadores da Vila, nada mais são que ex-professores universitários da era hippie, que idealizaram uma fazenda afastada de tudo, uma espécie de sociedade alternativa, onde os filhos nasceram e não possuem a mínima ideia de que suas vidas é uma fraude.
A filha cega de um dos líderes da Vila será a única que atravessará o bosque e descobrirá a verdade.
Quando estreou em 2004, “A Vila” não foi um grande sucesso. Ao contrário, nem foi um filme muito discutido. A crítica no geral, achou pouco expressivo, levando em consideração que o diretor era o mesmo que tinha feito “O Sexto Sentido”, esse sim, um grande filme de terror. Acontece que Shyamalan não estava interessado em produzir mais uma trama de terror, mas sim construir uma alegoria do que estava acontecendo nos Estados Unidos naquele momento.
A Vila era claramente uma fábula política sobre a América da era Bush. Naquele período, os Estados Unidos tinham realizado a ocupação do território iraquiano sob a alegação de que o país inimigo mantinha um arsenal de armas químicas que ameaçavam a paz mundial. Diante dos fatos, até mesmo a opinião pública apoiou a guerra, para logo depois descobrir a farsa do governo, endossada por cientistas. A delegação de pesquisadores da Organização das Nações Unidas foi comprada para sustentar em relatório a versão de um arsenal que os iraquianos nunca tiveram.
O relatório fraudulento serviu para iniciar uma guerra.
Shyamalan aprofundou um degrau na sua cinematografia ao conceber “A Vila”. Ele demonstra pra gente como é frágil o inconsciente coletivo. E como, às vezes, uma bobagem pode gerar uma reação em cadeia com uma sociedade inteira apoiando um absurdo.
Seria cômico se acontecesse uma vez, mas é trágico por que a história mostra que acontece sempre. Como disse Bertold Brecht: “A cadela do fascismo sempre está no cio”! Como humanidade, estamos sempre nos repetindo. E, na política, caindo vítimas da mesma piada, como bobos.
Não cabe aqui analisar se determinado fato é falso ou verdadeiro, mas refletir sobre como numa sociedade do espetáculo, uma imagem hoje é capaz de virar boton, calendário, folheto.

Foto icônica do atentado contra Donald Trump: realidade inflacionada
Vejam o episódio recente do atentado a Donald Trump. O episódio gerou a foto das fotos de 2024: após ser protegido por uma equipe, o ex-presidente cerra e levanta o punho direito, de forma patriótica, como que dizendo, ninguém vai me levar daqui.
A imagem reitera a convencional simbologia do herói em guerra, bandeira nacional ao fundo, céu azul, o herói com as mãos em punho, mostrando que não se acovarda diante do perigo. Nada de incorreto, mas o fato cria uma realidade inflacionada.
Esse tipo de uso político já ocorreu no Brasil, na tentativa do assassinato de Bolsonaro em 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora. Sabemos o que é a força desse tipo de concepção do herói/vítima. No nosso caso, ele invadiu as mídias sociais e foi usado estrategicamente para criar a comoção das massas.
Novamente, cabe ressaltar que não estamos analisando o mérito de uma imagem ser falsa ou verdadeira, mas como ela pode gerar diversos tipos de leitura e influenciar a realidade.

Cena de "Rede de Intrigas": frustração, descontentamento e indignação geram o fascismo
Em 1976, Sidney Lumet dirigiu “Rede de Intrigas”, uma sátira política pontual sobre como as imagens dialogam com a massa. No filme em questão, um repórter de meteorologia, cheio de problemas pessoais, é demitido do jornal e invade a emissora ao vivo num surto de desabafo.
A diretora da programação decidi manter a câmera funcionando para ver até onde o drama daquele homem pode atrair a atenção. E eis que a honestidade contagia de tal forma a opinião pública, que os diretores da emissora decidem faturar sobre a catarse do jornalista. Ele é readmitido no canal e ganha um programa de televisão.
Não demora para ele atingir altos índices de audiência. O discurso, no entanto, que começou como um desabafo sobre a crise de valores da sociedade, vira rapidamente palanque para a defesa de um pensamento intolerante, sectário: “Há coisa tá feia pra você?”, pergunta o dono do programa. “Eu estou sentindo isso também e estou com saudades dos velhos tempos. A gente pode mudar isso junto. Vamos reestabelecer os antigos valores!”
Curioso é que o filme é dos anos 70, mas retrata um viés de frustração cotidiana, de descontentamento e indignação popular que foi o estopim para o nascimento do movimento que provocou uma Guerra Mundial no passado, o fascismo.
O movimento nasceu na Itália em março de 1919, quando Mussolini fundou o Grupo Italiano de Combatentes (FIC), que viraria o Partido Nacional Fascista (PNF), uma organização paramilitar de cunho nacionalista que unia em especial ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, homens desempregados e jovens. Em outubro de 1922, o grupo promoveu um golpe de Estado, na chamada Marcha Sobre Roma, colocando Mussolini no poder e instituiu o primeiro Estado oficialmente fascista no mundo.
Por questão de ordem, o fascismo radicalizava o controle sobre o estado, governando em prol de uma tradição nacionalista, patriarcal, religiosa e em prol das antigas hierarquias. A Roma Antiga inspirava o ditador, no mundo dos Césares, os homens do Judiciário, que impunham as leis para a comunidade, usavam as “Fasces” (espécie de machado) que lembrava a todos que a desobediência podia ser punida com a morte.
Foi desse instrumento, a “fasces” que surgiu o derivado do “Fascismo”. A defesa fascista era feita com rigor e em nome de uma maioria (claro que favorecendo uma classe específica). A elite branca. E, é claro, essa maioria não é numérica, é a elite branca. As chamadas minorias não tinham vez, eram perseguidas, excluídas ou caladas no ciclo social.
No começo, Mussolini gesta esse seu regime usando o rádio, mas depois percebe que o cinema é o veículo ideal para disseminar suas ideias. Em 1932, o líder escreve: “é impressionante como a tela fala com as massas. Mesmo um camponês que não aprendeu a ler, compreende perfeitamente a mensagem que o filme quer passar. Temos que adotá-lo como nossa cartilha!”
E a partir de então, tanto ele quanto Goebbels, na Alemanha, passam a investir firmemente nesse novo instrumento de comunicação, buscando uma estética adequada para divulgar os valores dos Estados Nacionais. Perto desses arquitetos do fascismo e do nazismo, Trump, Bolsonaro e Milei não passam de três vira-latas incultos.

Cena do Filme "Metrópolis": a desindividualização dos personagens
Hitler, que era um artista frustrado, era mais ambicioso em seus propósitos. Ele via uma beleza no épico mudo “Metrópolis, que considera o paradigma a seguir. A saber, as proporções monumentais, a padronização das técnicas de representação, o estilo hiper-realista, a simulação de movimento, as linhas retas e homogêneas (geralmente apontando para o céu), a preponderância de uma cor sobre outras, a desindividualização dos personagens e narrativas em detrimento de personagens coletivos (a massa), a coreografia e os corais, a reverência ao esforço físico e ao trabalho braçal.
Fritz Lang, claro, não tencionou criar o filme para servir de orgulho patriótico. Na concepção do cineasta, o operariado que trabalha arduamente na Metrópolis, é ingênuo e nada sabe dos sonhos dos planejadores. Eles são vítimas das maquinações.
Mas para Hitler, sua ideia de controle e união das massas estava eloquentemente traduzida ali. Tanto que ele convidou pessoalmente Lang para chefiar a Nova Unidade de Cinema Nazista. Na mesma noite do convite, o cineasta deixou a Alemanha, já prevendo pra onde a loucura do novo líder direcionaria o país.

Cena do filme “O Triunfo da Vontade”: a mística alemã para criar temor
O que Lang fez com o cinema de ficção, o ministro da propaganda Joseph Goebbels pediu para a cineasta Leni Riefestahl transformar em experiência estética real no filme “O Triunfo da Vontade” (1934). Para filmar o Congresso Nacional Socialista em Nuremberg em 1934, que agrupou meio milhão de membros do Partido Nazista, o estado não economizou esforços. A produção contou com uma equipe de 200 técnicos, 30 câmeras, 5 quilômetros de trilho deslizante, quatro gruas, sendo que uma delas confeccionada para atingir 50 metros de altura.
Tudo isso para saudar não só a solidariedade mística da Alemanha a seu líder, mas para criar temor nos países vizinhos, já demonstrando que aquele poderio em breve marcharia para dominar a Europa.
A luz dessa história e buscando uma repercussão nos dias de hoje, o que fica claro é como os meios de comunicação avançaram a ponto de a agenda fascista continuar entranhada no sistema, sem que muitas vezes se perceba. Filmes como “O Ovo da Serpente” (1977), de Ingmar Bergman; “Terra e Liberdade” (1995), de Ken Loach; e “A Fita Branca” (2009), de Michael Haneke; traçam o diagnóstico do que é viver numa sociedade sem perceber que ao seu redor emerge um perigo absurdo.

Cena do filme “A Vida dos Outros”: o perigo da vigilância
A tecnologia avançou tremendamente. A imagem se tornou mais importante que a palavra. E o monitoramento do que fazemos em nossa vida e o que planejamos é preciso. É de um filme alemão, “A Vida dos Outros” (2006), aliás, que vem uma epígrafe assustadora que diz muito respeito sobre essa ideia de vigilância. O espião do filme diz: “Você não me conhece, mas eu sei tudo sobre você”.
Entrevemos as coordenadas de uma ordem monstruosa de que as horizontais e verticais da imagem tecem uma teia de aranha, do qual se tornou muito difícil enfrentar.
Irônico é que os líderes com cara de buldogue de hoje (sim, o tempo todo eles fazem a cara de bravo, de que vão chutar a porta e resolver os problemas de seus respectivos países) tentam copiar a agenda dos velhos fascistas, mas a eficácia de símbolos que utilizam é menos sofisticada do que os fascistas e nazistas usavam.
Esses novos governos autoritários, com pegada ruralista, agem a partir da simbologia codificada pelo maniqueísmo do cinema seriado dos anos 30. Existe o cowboy, que é o herói, e o índio, que é o inimigo. A leitura é fácil, a mensagem desembaraçada, e a adesão muito mais simples, que a cartilha que Mussolini e Hitler propunham.
Subverter essa ordem, que está formando um celeiro de pessoas cada vez mais alienadas, é o grande desafio do pós-moderno ano de 2024.
Não à toa, cada vez que esses líderes entram no poder, a educação e a cultura são os primeiros pilares que eles tentam derrubar.
Hamilton Rosa Jr. é cineasta, professor e jornalista.
Comments