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Câmara Escura

Atualizado: 13 de mar.

Devoção e transgressão em ritmo de performance

Por Os Albertos


Durante a pandemia de coronavírus que assolou o Brasil e o mundo entre 2020 e 2021, nos isolamos em um sítio no interior de São Paulo para dar continuidade a uma série de projetos nos quais trabalhávamos naquele momento: entre eles, a finalização do nosso primeiro longa-metragem, “A senhora que morreu no trailer”, e a escrita, diagramação e publicação dos livros “Suzy King, a Pitonisa da Modernidade” e “Divina Valéria”.

 

Foi nessa época, andando pelas estradas de Itupeva, que nos deparamos com algumas capelinhas e passamos a voltar com certa frequência a elas, encantados com a aura de mistério que as envolvia.



Essas chamadas “capelinhas”, encontradas em todo o interior do Brasil, podem ser definidas como um espaço de reverência ou homenagem a alguém morto no local em que são erguidas, geralmente em circunstâncias trágicas. Num primeiro momento, abrigavam um altar singelo que representasse a devoção do morto, mas com o passar do tempo começaram a receber objetos de culto quebrados ou simplesmente descartados por conversões a outras religiões que dispensavam a representação iconográfica.

 

Viraram um lugar de descarte de objetos devocionais católicos ou de raiz africana, uma vez que um ex-devoto, mesmo convertido a outro credo, jamais jogaria seu antigo ídolo no lixo. Nota-se que a superstição quase sempre caminha junto à devoção.

 

A beleza estética dessas capelinhas despertou nosso desejo de registrá-las, reforçado pela consciência de que elas tinham dias contados. Em poucos meses, percebemos que várias foram simplesmente destruídas e cederam lugar a construções com as quais nada tinham a ver. Sem um objetivo claro do que pretendíamos com aquilo, passamos a filmá-las, percorrendo inclusive outras cidades da região em busca de capelinhas.


 

Conforme mergulhávamos naquele universo, nascia em nós uma reflexão mais profunda sobre o descarte de ídolos que as capelinhas representavam: percebemos que algo parecido se dava com os ídolos pop, fossem eles de rádio, disco, televisão, cinema, teatro ou até mesmo da internet: após um tempo sob os holofotes e sendo alvo de adoração, poucos escapam do descarte, seja pelos veículos midiáticos que os construíram ou pelo próprio público que antes os idolatrava.

 

Foi assim que criamos a figura de uma Carmen Miranda andarilha e fantasmagórica circulando pelas capelinhas em ações performáticas pensadas para o cinema. Carmen como o símbolo máximo da cultura pop vintage brasileira e lamentavelmente também vítima desse descarte, caindo num esquecimento maior a cada ano. Para representá-la, ninguém melhor do que a atriz e performer Regina Müller, conhecida nas rodas burlescas e cabareteras como Dorothy Boom, com quem trabalhamos em nosso filme anterior e outros projetos realizados em casas noturnas e teatros e com a experiência de “incorporar” Carmen - ou digressões mirandianas - desde a década de 1970, quando foi uma das estrelas do espetáculo “Dzi Croquettas - As Fadas do Apocalipse”, que contava com uma cena em que duas dezenas de Carmens - entre elas, Regina - desciam uma escadaria com turbantes de frutas na cabeça e calçando enormes plataformas.

 

Na prática, porém, a caracterização de Regina para a primeira gravação desse filme até então ainda sem título e roteiro definitivo nos remeteu a outra figura do nosso imaginário: Gilda… A famosa Gilda de Campinas!

 

Zanzando pelo centro dessa cidade do interior paulista entre os anos 1940 e 1970, uma figura de mulher atraía olhares curiosos, sorrisos e muitas vezes expressões de desdém pelo incômodo que a diferença sempre causou. Virar uma figura folclórica da cidade foi rápido: Gilda - a louca. Em suas caminhadas, trajada sempre como uma estrela de cinema, distribuía sorrisos, parava para fotos, dava autógrafos e cantava quando pediam. Uma verdadeira celebridade atendendo seus fãs.

 

Os lojistas a presenteavam com mimos, os bares supriam sua fome e quando não estava pelas ruas, podia ser encontrada em algum cinema, sentada na primeira fila, conversando com os personagens. Radical em suas escolhas, ia do amor extremo ao ódio pelos ídolos da tela. O mesmo acontecia com seus inúmeros “noivos” famosos, fruto de seu rico imaginário. Era chamada Gilda porque, em certa feita, identificou-se com a personagem Gilda vivida por Rita Hayworth no filme noir homônimo de 1946 e ali mesmo mudou de identidade para nunca mais ser Jovina (seu nome verdadeiro).

 

Substituir a Carmen Miranda andarilha do argumento original por uma versão underground de Gilda nos pareceu pertinente, pois a própria estrela das ruas campineiras era um exemplo de devoção intensa a um ídolo, além de ser uma legítima andarilha urbana.

 

A adesão dessa personagem ao nosso processo de criação nos conduziu à escritora e atriz Marilu Martinelli, grande estudiosa dos temas místicos, religiosos, mitológicos e transcendentais, que poderia colaborar com conhecimentos e pensamentos preciosos a respeito da devoção e seus desdobramentos, tanto no caso das capelinhas como no de Gilda.



Mas se estávamos falando de iconofilia, por que não falar de seu antônimo iconoclastia?

 

Paula Toledo, filósofa e performer, cujo trabalho é divulgado principalmente através do Instagram @raeliselektra, se autodefine nas redes sociais como “uma iconoclasta”. Ou seja: um contraponto perfeito para tudo o que estávamos discutindo naquele roteiro que começava a tomar forma.

 

Nesse momento, já tínhamos a base que sustentaria o filme. Os demais nomes do elenco surgiram quase que espontaneamente por suas ligações com os elementos centrais de nossa narrativa: Índia Rubla e André Silva no quadro das capelinhas, Egas Francisco e Augusto Sevá no de Gilda e Maura Ferreira e Bayard Tonelli em participações pontuais.

 

Uma das características do nosso cinema é manter o roteiro em aberto ao longo do processo, considerando as intervenções e contribuições dos próprios envolvidos nas filmagens, as casualidades naturais dos sets escolhidos e o fluxo energético das situações, numa espécie de “work in progress” contínuo.

 

Por fim, a persona de Regina, Dorothy Boom, se impôs de tal forma no roteiro que o filme passou a ser guiado por sua caminhada existencial pelos temas propostos: iconofilia e iconoclastia, devoção e transgressão, incorporação e performance e o próprio processo criativo da protagonista, atravessado por elementos religiosos, profanos e da cultura queer.


O resto é cinema.

 

Confira o trailer do filme

 


Serviço

Filme: O Grande Espanto de Dorothy Boom

Direção: Os Albertos (Alberto Camarero e Alberto de Oliveira)

Produção: DGT filmes

Ano: 2024



Alberto Camarero e Alberto de Oliveira são diretores de cinema, roteiristas e escritores, autores do livro Cravo na Carne - Fama e Fome - o Faquirismo Feminino no Brasil.

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