Os Labirintos de Stanley Kubrick
Por Hamilton Rosa Jr.
O prazer de analisar a obra de um artista é forçosamente qualquer coisa de muito interior, ligada às impressões e ao sentimento. Não sei se existe uma fórmula, mas acho que não podemos compreender uma trajetória se nos interessarmos apenas pelos aspectos da construção da biografia do autor e pela análise de suas obras. No caso de Stanley Kubrick, que com certeza é um dos maiores diretores da história do cinema, há vários documentários levantando seu perfil, abordando a figura excêntrica, o gênio avesso as entrevistas e a câmera, e o sujeito que se escondia numa casa de campo no interior da Inglaterra.
Os filmes de Kubrick, sem dúvida, colocam essa questão em evidência, mas com exceção do documentário “Kubrick por Kubrick”, de Gregory Munro, que traz entrevistas do francês Michel Ciment, com o cineasta, a maioria dos trabalhos feitos não chega ao verdadeiro homem, não extraem as contradições, nem investigam o principal, o coração do que teria sido esse sujeito que nos maravilhou com seu cinema por mais de quarenta anos.
Por outro lado, quem sou eu, um cineasta tupiniquim, do interior do Brasil, para querer ditar o caminho que seria certo abordar? Eu, aliás, que nunca tive contato com a pessoa, e só posso falar de Kubrick pelos seus filmes?
Como professor e crítico de cinema, eu já tinha pesquisado e estudado a obra de Stanley Kubrick para um curso de cinema, dividido em quatro partes, que ministrei há três anos. Mas não imaginava que voltaria ao tema com uma ambição maior, como aconteceu, ao decidir fazer um documentário sobre o cineasta.
Tenho que confessar que foi o acaso que alimentou esse desejo. Estava à caça de imagens para ilustrar uma nova aula de cinema, quando descobri que todo o material iconográfico sobre o realizador tinha sido doado pela família para a University of Arts London em 2007, e que esse material estava disponível para ser estudado por professores e pesquisadores via web. O contato com a universidade não foi difícil.
Eles me liberaram uma senha para entrar no acervo e, a partir disso, foi como se abrissem uma porta para o corredor para um museu muito particular, com acesso para novos corredores que se expandiam e pareciam não ter fim. Há material ali no acervo da University of Arts, que daria para fazer muito mais que um documentário de uma hora. Daria para fazer uma série sobre a vida e obra de Kubrick.
A questão é você conseguir autorização para usar esse material. O que, no meu caso, teve que ser discriminada item por item e só utilizada para pesquisa com caráter educativo e sem fins lucrativos.
No entanto, o desafio maior para produzir “Os Labirintos de Stanley Kubrick” foi escolher parte desse acervo e organizá-lo para produzir um trabalho fiel ao imaginário do cineasta e, sobretudo, coeso. Acho que a base de tudo começou pelo trabalho de Kubrick quando ele era fotógrafo da revista Look. Ao analisar esse acervo, que segundo a Universidade beira as 12 mil fotos, podemos perceber, que existe por trás da técnica, um observador muito atento ao acaso e as ironias que a natureza prega ao homem. Há muito humor em tudo o que Kubrick capta com sua câmera.
Depois, quando ele se torna um cineasta, veremos o cineasta atrás desse acaso de novo. A natureza está pregando peças no homem o tempo todo. Prega peças, quando, por exemplo, os cientistas programam um supercomputador para ajudar astronautas a desvendar um mistério, e a máquina se revolta (2001 – Uma Odisseia no Espaço), ou quando o exército prepara minuciosamente soldados para serem máquinas de matar, e um pelotão inteira, cai fácil na armadilha de uma mulher guerreira, uma jovem franco-atirador e vão sendo eliminados um a um, por não entenderem o que é a essência de brigar por uma causa.
Kubrick produzia comentários geniais como esse.
Dizem que ele era um mago dos efeitos. Mas onde está o efeito na cena em que Nicole Kidman deixa escorregar seu vestido e, digna de uma estatueta grega, descobre o esplendor Delicado, costas e pés, de seu corpo nu. Essa simplicidade natural, obviamente, não é apenas um efeito acadêmico, sutil e quase invisível, mas o efeito por excelência. A arte suprema.
Um artista autêntico, ao longo de sua jornada, tenta ir ao que ele acredita ser o coração, a alma e o espírito de sua arte, se esforça para servi-la e, acima de tudo, para revelá-la. Kubrick faz diferente. Em suas obras as pretensões do espetáculo da performance, caem por terra. É como se ele quisesse arrancar a máscara de uma civilização que inventou regras para ter o controle de tudo, mas a mercê de qualquer abalo sísmico, descobre que não tem controle de nada.
Veja só a contradição: estamos falando de um sujeito que adorava jogos e era um excelente enxadrista. Em cada filme, aliás, aparecia alguém do elenco ou da equipe técnica, desafiando o cineasta para uma partida de xadrez. Não sei se é marketing ou, não. Mas dizem que ninguém nunca ganhou dele. Outra coisa que Kubrick era apaixonado, a música. Ele chegou a experimentar a bateria. Ao contrário do que muitos imaginam, não era a música clássica que ele mais amava. Kubrick adorava o jazz. Possivelmente pela liberdade que o embalo de uma banda deste gênero, trazia, deixando cada integrante ter a sua oportunidade de improvisar algum solo.
Talvez a chave para compreender a essência da arte de Kubrick esteja no verbo vagar. Kubrick, nos mais de quarenta anos de sua carreira foi caminhando com sua câmera. Foi observando, experimentando, representando com a imagem e o som.
No cinema hollywoodiano, na maioria das vezes, a função da imagem e do som são reduzidas a uma função puramente materialista. Ao seu caráter mais comerciante. Enganadora/vendedora de coração, os filmes de Hollywood procuram mostrar que é o dinheiro é que traz a felicidade e faz o mundo se mover. Em nenhum filme de Kubrick você vai ver isso.
A medida que desenvolve sua obra, Kubrick parece se inquietar com investigações de valor cada vez mais moral. Fala-se muito no aspecto formal dos filmes do cineasta, mas o que se vê mesmo é uma certa perplexidade na forma como a civilização progride para o absurdo. Personagens como o astronauta de 2001, o delinquente Alex de Laranja Mecânica, ou o aprendiz de escritor de O Iluminado são homens que procuram respostas numa realidade cada vez mais ameaçadora, brutal e incompreensível. São filmes, portanto, que nos conduzem para um foco cada vez mais filosófico.
Há certa altura, coloco em questão quem no cinema contemporâneo produziu uma obra com semelhante permanência nos últimos 20 anos.
No passado, podemos falar em Bergman, Fellini, Kurosawa, Resnais, Bresson, mas atualmente quem faz um cinema que transcende o gênero e a época? Kieslowski, Lynch? Haneke?
Desde o início, Kubrick trabalhou a imagem e o som sob o signo da beleza. Só que essa beleza nunca funcionou apenas como um chamariz. Toda a parafernália expressionista que nosso cineasta trabalhou, triturou, remodelou durante sua obra, encontra uma finalidade. Uma riqueza, do qual é duro se despedir.
Não à toa, foi muito pensada a ideia de como terminar o documentário. A solução que achei foi chamar o último capítulo de “A Despedida Impossível”. Acredito que esse é um sentimento que todo cinéfilo conserva quando se depara com o cinema de um diretor do qual ele não quer se separar. Para mim, essa é a sensação que tenho, como transito pelos corredores dos filmes de Stanley Kubrick. Amo tanto seu cinema, que não quero encontrar a saída de seu labirinto.
Hamilton Rosa Jr. é cineasta, professor e jornalista.
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