Câmara Escura
- URRO
- 3 de dez. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de fev. de 2023
Diário de Filmagem: “Meninas”
Por Hamilton Rosa Jr.
Aqui não é o crítico de cinema, mas um cineasta independente do interior de São Paulo, dando o testemunho das dificuldades de produzir um filme durante a pandemia.

O filme levou 26 meses para ser produzido por conta da pandemia
Sou jornalista de profissão e passei muitos anos na imprensa, escrevendo sobre filmes. Houve um momento, no entanto, que me enfronhei no set de filmagem para entender a prática de fazer cinema. Gostei tanto que de lá nunca mais sai. “Meninas”, meu último projeto, é o resultado da experiência de 15 anos me aprimorando nessa prática.
Desde então mantenho um pé em cada lado. Continuo um jornalista, redigindo textos sobre os filmes que entram em cartaz, e, em paralelo, estou sempre no set criando e inventando moda.
Claro, que procuro separar bem essas duas tarefas: escrever críticas e dirigir e produzir filmes, porque acho que elas possuem critérios diferentes de abordagem, diretriz e análise. As duas são passionais. A crítica envolve um conhecimento semiótico complexo, o objetivo é aguçar uma sensibilidade artística no leitor. Já filmar é outra coisa. Joga você dentro de um processo criativo, técnico e emocional, que te atinge de uma forma expositiva.
Acho que não cabe a mim escrever um texto abordando um filme que eu mesmo criei.
Por princípio, não tenho distanciamento para julgar meu próprio trabalho.
O pessoal do corpo editorial da URRO!, no entanto, lançou uma provocação ao me pedir para escrever nesta edição sobre o “Meninas”.

Bastidores: as cindo senhoras que atuam no filme pertenciam ao grupo de risco
Na verdade, os editores acompanharam o drama da produção, feita durante o auge da pandemia, e testemunharam minha crise. As cinco senhoras, que trabalham no filme, pertenciam ao grupo de risco e estávamos em um impasse, porque seria muita irresponsabilidade da minha parte incentivar encontros clandestinos, enquanto em torno de nós pessoas estavam ficando doentes e morrendo.
Houve debates online sobre essa questão que eu achava fundamental, afinal um filme não pode ser maior do que a vida, mas havia membros da equipe que discordavam da circunstância e queriam se encontrar. Isso só para citar uma das inquietações que nos afligia, durante o processo.
“Meninas” foi o trabalho mais complicado que já rodei e o mais oneroso. Levou 26 meses para ser concluído. Quando começamos, nem havia pandemia. A intenção era escrever uma história irreverente sobre cinco senhoras que davam de ombro para a idade e caiam nas baladas como se ainda fossem cinco adolescentes. Era final de 2019 e a gente nem sonhava com a reviravolta que o covid traria para todos.
Na primeira versão do roteiro, lembro que pensei em dedicar o filme a minha mãe e a tantas outras mulheres que gostariam de ter uma vida leve como as “Meninas” do filme, mas apenas sonham com a possibilidade e continuam mergulhadas no papel que a sociedade impõe a elas. A sociedade, aliás, é tristemente maquiavélica com a terceira idade.
Ė vergonhoso como as pessoas são tratadas depois que passam de certa fase da vida. Economicamente, você deixa de ser visto como um ser “produtivo”, o próprio Estado te vê como um estorvo. Esquece-se que essas pessoas são "memória''. Ainda que, tantas vezes sem querer, cada uma dessas pessoas lembra tudo o que foi, tudo o que poderia ser e tudo que pode vir a ser. Elas poderiam fazer muito por uma nação, se as víssemos, com suas experiências e beleza de outono.
Finalizei, portanto, um roteiro animado com a ideia de celebrar uma saudável transgressão. E os ensaios com as atrizes discorreram com uma alegria anárquica, porque as cinco veteranas atrizes, inclusive, traziam outras ideias subversivas pra gente acrescentar à cena.

Bastidores: o diretor com o elenco no set de filmagem
A atriz Inês Fabiana era a aglutinadora das reuniões. Mila Cassiano era a que queria desobedecer todas as regras. Rosana Brandão, a questionadora de cada fala que eu escrevia. Elizinha Ferraz a mais disciplinada, em seu retorno ao mundo lúdico das representações, e Stella Vilela, uma observadora desconfiada, sempre interessada em ver onde aquilo terminaria.
Felizmente, em dois meses de ensaio, as dúvidas foram dissipadas e decidimos rodar a primeira cena do filme no Carnaval. A filmagem é um capítulo tão essencial quanto o roteiro, quando se planeja levar um projeto como “Meninas” adiante.
Antes de tudo, você não faz cinema, se não tem uma turma. É preciso reunir uma equipe e não apenas um grupo técnico. É importante se cercar dos melhores talentos possíveis e, neste quesito, a participação do cineasta Flávio Carnielli e da também cineasta Helen Quintans, foram a espinha dorsal da equipe que foi se formando, e muito responsáveis pelo belo artesanato que o filme tomou.
Eu já tinha produzido três filmes para eles, e nos tornamos grandes amigos, sobretudo, pela paixão que cada qual, ao seu modo, tinha por contar uma história em imagens.
Flávio Carnielli assumiu a produção e foi “pau pra toda obra”, onde precisasse, e Helen Quintans abraçou a fotografia e a direção de arte, com a delicadeza no olhar e talento, que nunca lhe faltou.
O primeiro dia de filmagem num bloco de Carnaval em Joaquim Egídio, transcorreu em clima de festa. Todos já tínhamos ouvido falar da tal gripe que tinha se originado na China e na forma alarmante que estava tomando alguns países da Europa, mas não imaginávamos como a doença ia rapidamente se disseminar, chegando até nós.
O primeiro caso oficial de covid foi relatado no Brasil cinco dias depois da nossa primeira diária de filmagem e, continuamos agindo como se tudo tivesse normal, mas três semanas bastou para o desespero afligir a todos e, como consequência, instaurar o confinamento.
Daí tivemos aquele temor de interromper um trabalho e não mais voltar. Havia também o medo que tomou as pessoas de um isolamento, que durou meses, mas poderia se estender por anos, reduzindo todos a um cotidiano marcado pela frieza dos contatos online.
Neste período, o amigo Adriano Araújo fez imagens de drone do centro da cidade deserta, que me deixou estarrecido.
Em resumo, aquela comédia inicial que tínhamos planejado filmar tornou-se obsoleta. A propósito, o próprio humor mudou. O que a gente via graça antes, agora não tinha mais sentido. Foi assim que reescrevi o roteiro, tentando reconduzir o filme como uma experiência filmada online. Depois conclui que ficaria óbvio.
Conforme o tempo passava, vários membros da equipe contraíram o covid, e ficamos meses pensando se não devíamos abandonar o projeto, afinal, nada tinha prazo determinado para voltar. As vacinas não chegavam, as dificuldades de todos aumentavam. E aí surgiu a discussão controversa, de que talvez valesse a pena nos reencontrarmos para fazer do filme um testemunho de tudo que estávamos sentindo.
Quando esse assunto chegou ao ponto em que estávamos quase todos convencidos que teríamos que fazer sacrifícios para terminarmos o filme, os primeiros lotes de vacinas começaram a ser aplicados e era apenas uma questão de tempo para realinhar a produção.

Depois da pandemia, o filme mostra que a vida voltar a correr livremente
Imaginávamos que quando nos reuníssemos, haveria muita emoção, mataríamos nossas saudades, mas, não aconteceu exatamente como pensávamos. Houve sim, um estranhamento. Parecíamos outras pessoas, cada qual se mantendo friamente no seu quadrado, com seu álcool gel e sua máscara.
A gente estava se comportando como as peças de um tabuleiro. Claro, o posicionamento de cada um visava zelar pelo outro, mas houve uma apreensão. No fundo, estávamos juntos ali, sofrendo com a impossibilidade de expor diretamente nossa cordialidade, nosso carinho. Terminamos os ensaios cheios de limites e obedecendo a essa absurda coordenação geométrica.
Considerei terminar “Meninas” buscando algum alento na ciência, mostrando que, com as vacinas, o horror já estava prestes a ser reparado. Seria maravilhoso se o contágio tivesse uma finitude. Mas a pandemia continua aí, mostrando como na vida a gente é levado pela imprevisibilidade e surpresa.
Para os interessados em conhecer mais sobre os bastidores do filme “Meninas”, esse é o documentário “Diário Sentimental de uma Filmagem”, cheio de registros inéditos, que complementam o texto acima:
Hamilton Rosa Jr. é cineasta, professor e jornalista.
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