Câmara Escura
- URRO
- 26 de ago. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 27 de ago. de 2022
Os Homens do bosque
Por Hamilton Rosa Jr.
Alex Garland, para mim, é a maior promessa do cinema britânico presente. Ele dirigiu dois dos melhores filmes da atualidade, “Ex Machina” (2015) e “Aniquilação” (2018). Agora, ele chega aos cinemas um filme de terror inusitado: “Homens” (Men, 2022). Garland afirmou, em entrevista, que a ideia (ou melhor, a gênese) de “Homens” partiu de um pesadelo que, durante meses, o perseguiu sem cessar: um homem com a barriga inchada, gritando desesperado, até seus testículos explodirem e, dali, brotar um bebê.

Men: enquadramentos rigorosos e paleta restrita de cores conduzem a uma jornada soturna
Muitos filmes de grande complexidade partem de imagens aparentemente tão primárias como esta. Psicanalistas e semiólogos podem ter muito para dizer. Gosto mais de pensar que tudo se organiza em torno de coisas que nem sempre se explicam (toda a explicação é sempre falsa) e que certas imagens devem ser sentidas, como a “Suíte para Violoncelo Solo”, de Bach.
Não percebemos bem o porquê, mas em Bach, quando entra o cello, compreendemos, no âmago, do que uma melodia é capaz. No entanto, os tais psicanalistas podem gostar de saber que Garland dedicou este filme à mãe, cujo nome de solteira era Caroline Harper. Harper é, no filme, o nome da personagem interpretada por Jessie Buckley (uma atriz de teatro pouco conhecida no Brasil).
O filme tem início com a protagonista viajando para o campo, depois de perder o marido (Paapa Essiedu). Ele despencou do terraço em circunstâncias que, inicialmente, se mostram difíceis de decodificar. Um prólogo posterior revela que, no momento da queda, a esposa olhava pela janela, e, de súbito, captou a expressão confusa e perdida do rosto do marido, enquanto ele se afundava no vazio.
Para se recuperar da aflição, a mulher reserva uma estadia em uma pitoresca casa de fazenda de Gloucestershire. O local é paradisíaco, mas o proprietário do chateau, Geoffrey (Rory Kinnear), um sujeito sinistro, a adverte, assim que a vê apanhar uma maçã da árvore no jardim lá fora: “Eva, você não deve fazer isso. É o fruto proibido”.
Uma câmera austera é colocada atrás da personagem para desvelar a paisagem. E os enquadramentos rigorosos e a paleta restrita de cores, nos conduzem por uma jornada tão soturna quanto intrigante. Enquanto explora o bosque local, Harper descobre um túnel ferroviário abandonado. Ela caminha para dentro do escuro e brinca, projetando sua voz como uma criança numa gruta mágica.
Os ecos que reverberam são de uma beleza surreal. Os sons de felicidade, porém, serão abafados por uma silhueta que aponta na outra extremidade da passagem. O homem em questão começa a correr em sua direção, e Harper desmorona em pânico. Essa sombra vira uma ameaça constante. Na primeira parte do filme “a presença” parece estar em todo lugar. Na segunda parte, ela descobre que ele é um mendigo e assume uma estranha semelhança com Geoffrey, o dono do chateau. E não só ele. Todos os homens da aldeia – o vigário, o policial, o barman e um adolescente – compartilham as mesmas características faciais. Todos são interpretados pelo ator Rory Kinnear, cuja qualidade de cidadão comum não poderia ser usada de forma mais sinistra.
Explicar o que une esse zoológico junguiano não seria apenas um spoiler, mas exigiria o preenchimento de certos detalhes que o roteiro de Garland deixa calculadamente em branco. Não somos apresentados a mistérios a serem resolvidos, mas sim empurrados para uma caminhada livre-associativa, através das maneiras quase infinitas pelas quais os homens têm desculpado, poetizado, disfarçado, ironizado e justificado religiosamente sua aversão e ressentimento pelo sexo oposto, desde tempos imemoriais.
Buckley avança insegura e com temor sobre esse mundo como uma Alice engolida pelo espelho. No fundo, ela continua uma presa da antiga construção patriarcal. A relação abusiva dentro de seu casamento a condicionou a acreditar que não existe defesa contra o potencial agressivo dos homens. (Num trecho do filme, ela liga pra uma amiga, e lhe diz para vir: “venha, por favor, fique comigo até que eu perca a sensação de pânico e horror”).
Ninguém é capaz de tocar nesse mistério visível que aflige na atualidade o “ser mulher” e o “ser homem” e ficar indiferente. Algumas das cenas mais assustadoras do filme nascem de uma centelha muito íntima, como uma discussão doméstica em que o potencial de violência do marido – se anuncia como uma nuvem de chuva se aproximando. Mas outras cenas se inclinam avidamente para o grotesco, e um trecho tardio em particular está entre as coisas mais viscerais que vi no cinema em anos.
Por causa disso, muitos espectadores – a maioria, ouso dizer – podem achar que o diretor foi longe demais. No entanto, por trás dos corpos se arrastando e das cenas de sangue e vísceras há algo mais amplo. São duas ordens de mundos, duas ordens de valores, em cheque. Tentando se acertar, tentando coincidir. Garland parece sugerir que, como homens e mulheres, estamos numa transição. Os modelos estão mudando dentro da ordem social. Mas nem todos têm olhos para enxergar que esse avanço não tem volta.
Hamilton Rosa Jr. é cineasta, professor e jornalista.
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