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Convescote

Atualizado: 23 de jun. de 2022

É engraçado que estou tentando escrever um abre para essa entrevista e não consigo. Ela não teve a arte do encontro a la convescote, regado a vinho, riso e tira-gosto. Tentei a segunda taça para introduzir a vocês a artista Kate Manhães, mas uma entrevista feita por e-mail carece de olhos que se atravessam. A salvação é que Kate faz arte também com as palavras escritas. A cada resposta que chegava, um deleite. Não é à toa que a frutífera parceria de vida com a artista Rhelga Westin resultou em quatro livros para o público infanto-juvenil. Juntas, elas contam boas histórias. Em entrevista à URRO!, ela diz que acredita nunca ter se apresentado como artista e que ela foi acontecendo num exercício de reação/resposta à vida. Recorro, então, à memória de quando foi que conheci a Kate e me vem à mente uma reunião de políticas culturais para a cidade de Campinas, alguma mobilização em defesa do conselho, ou plano municipal de cultura, na Estação Cultura. Ideias em comum. Um senso de coletividade, de resistência à arte enclausurada em museus e dos museus enclausurados em si mesmos. Lá foram ela e um amigo a ocupar o Museu da Imagem e do Som para criar arte. Dizia-se perdida. Suponho que tinha perguntas. Perguntas boas, eu diria. Batizou o ateliê de Oráculo e há 10 anos vem respondendo a quem se coloca diante de suas obras com outras instigantes questões. Um brinde à arte de Kate Manhães e que Campinas saiba ler e receber suas palavras tal qual profecia de Oráculo: “que a cena artística em Campinas seja prosperidade compartilhada.”


URRO!- Quando e como nasceu a artista Kate Manhães?

Kate Manhães - Talvez eu nunca tenha pensado muito sobre isso e por isso vou tentar rodear a questão pra quem sabe assim ter uma resposta e é possível que ao me desenrolar eu tropece em alguma contradição, mas acho que seja esse um caminho interessante: contradizer-me. Mas de antemão, parece-me importante salientar que não acredito muito nisso de algo que nasce abruptamente, com data, remetente e tal, a gente não nasce, vai nascendo. A pergunta parece querer me levar a um começo, quando se inicia isso de ser artista? Difícil saber, até porque acredito nunca ter me apresentado como tal. Talvez uma ou outra pessoa tenha me chamado de artista em algum bar e então respondi. Acho que comigo foi acontecendo assim no exercício de reação. De certa forma, ter vindo de uma família tipicamente brasileira, com enormes dificuldades financeiras e sociais tenha me impulsionado a reagir ao mundo da forma que fui encontrando no caminho. Lembro-me bem de que quando minha família se mudou pra Campinas, no início da década de 90, éramos como aquelas imagens que costumeiramente apareciam no jornal nacional: ônibus lotado de pessoas migrando para outros estados em busca de uma vida melhor. Curioso é que quando eu via essas imagens na televisão, ainda pequena, conseguia me ver dentre todas aquelas pessoas. Entendia o olhar de espanto e medo que muitos tinham quando entrevistados, mas ao mesmo tempo, não entendia as razões de muitos deixarem suas cidades e irem com a sorte e a coragem tentar a vida como estrangeiros em outros lugares. Só com o tempo pude entender que o país estava passando por transformações: fim da ditadura e redemocratização. A infância foi um pouco que caótica, não posso dizer que tive grande contato com as artes visuais nesse período, mas pude desfrutar de um grande contato com a literatura e a música. Eu e meus irmãos gostávamos de copiar, desenhar, as capas dos discos que existiam em casa. Meu irmão mais velho, Michel, conseguia desenhar melhor do que eu, algo que me irritava profundamente me fazendo perceber que queria desenhar melhor, sem saber muito bem o que isso significava. Entretanto, pensando melhor nos eventos, acho que um, em particular, tenha me marcado profundamente. Eu devia ter uns 12 anos quando fui junto à escola ao MACC de Campinas ver a exposição do Salvador Dali. Foi a minha primeira vez em uma exposição e diferentemente da relação que eu tinha até então com a música e a literatura, eu me senti tão incomodada que falei e pensei no que vi por semanas. Na verdade até hoje consigo sentir o silêncio e o barulho daquele dia. Naquele momento eu não sabia, assim como não se sabe de nada quando se está vivenciando algo, que eu queria ser pintora. Depois fui fazer outras coisas. Fui morar nos Estados Unidos e acabei tendo aulas de desenho com Michael Giampaoli. Nesse período trabalhei em fast foods, jardinagem e um dia precisando de grana fui fazer uma faxina no ateliê do Michael. Bem, não se faz faxina em ateliês, no máximo se limpa o chão. E assim, naquele lugar caótico e organizado ao mesmo tempo, tive a oportunidade de vislumbrar um tipo de liberdade que eu só tinha sentido na exposição do Salvador Dali. Voltei pra Campinas, ainda com o semblante de medo e susto como as pessoas dos ônibus carregados de gente. Depois de um tempo comecei a dar aulas de inglês, tão perdida quanto a minha família na década de 90 e nesse processo encontrei algo que não se encontra facilmente, um amigo tão perdido quanto você. E foi desse lugar que surgiu o Ateliê Oráculo. Ele, Daniel Monfardine, e eu montamos um ateliê dentro do MIS ( museu de imagem e som de Campinas), durou seis meses nossa presença por lá. Depois fomos para a Vila Industrial carregando muitos encontros e amigos. Um desses encontros mudou a trajetória do ateliê profundamente: Rhelga Westin. Recém formada da Pucc, entrou no ateliê e aos poucos foi nos ajudando a entender que estávamos fora de órbita e o espaço, já no seu terceiro endereço, foi se entendendo como um lugar independente de arte. Há 10 anos trabalhamos juntas com artes visuais e literatura. Qual era a pergunta mesmo? - Quando e como nasceu a artista Kate Manhães? Quando eu tive o privilégio de encontrar pessoas tão perdidas quanto eu, o que já explicita o “como”.


URRO! - A sua história de "nascimento" desemboca no coletivo, no Ateliê Oráculo. Falando em coletivo, em Vila Industrial... a edição deste mês homenageia o Fábio de Bittencourt que ali no número 56 da Amador Bueno criou muitas obras e recebeu muitas pessoas. Conta pra gente como era a relação do Fábio contigo, alguma memória a compartilhar com os leitores da Urro?

KM - Poxa! Eu não consigo começar a falar do Fábio de Bittencourt, a quem sempre me referi como Fabinho, sem uma interjeição. O Fabinho era um artista enorme, dotado do talento do movimento, com um trabalho que transbordava toda uma sinceridade rara. Era impossível não olhar as obras do Fabinho e não ser atravessado pelo jeito que ele falava com as mãos ou da intensidade com a qual ele falava de arte e da vida. Teve um período que ele frequentava muito o nosso ateliê. E teve uma noite que ele cismou ser o homem gorgonzola. Acho que a gente comia muito desse queijo na época e sua inteligência nos arrancava risos. Depois, por alguma razão era difícil encontrá-lo, mas ele achava uma forma de te encontrar, sabe? Pelo menos comigo era assim. E cada vez que isso acontecia era um acontecimento, pois o Fabinho não se deixava esquecer. Podia ser um esbarrão na padaria, num posto de gasolina, numa festa, em qualquer lugar que fosse, era impossível não voltar pra casa dizendo: “Advinha quem eu vi hoje?”. Uma vez, umas duas da manhã, eu estava procurando um uber ou algo assim na Glicério, quando ouvi alguém me chamar detrás de um carrinho de cachorro quente, era o Fabinho. Perguntei a ele se estava esperando por um “dogão”, e ele disse que não, que só tinha parado ali porque tinha lugar pra sentar.

Eu já estava indo embora, mas resolvi sentar um “pouquinho”. Mesmo com um vento que parecia querer cortar a gente pela metade, ele começou a falar sobre construtivismo russo e pessoalidades corriqueiras, coisas que, pra ser sincera, era bem tarde pra conseguir lembrar no outro dia. E no meio da conversa, do nada, ele diz:

“Eu tenho um balde!”

Eu me lembro de ter rido muito respondendo:

“Ah! Que bom. Bom pra lavar roupa.”

“Não, um balde cheio de tinta, você não quer comprar?”

E Fábio de Bittencourt estava tentando me vender tinta na madrugada campineira e eu sem entender nada pedi fotos e explicações.

Aí, ele disse que teve essa aluna que era brasileira, mas morava na França, ou era francesa e morava no Brasil e, que tinha deixado pra ele, no testamento, as tintas, mas que eram à óleo e que ele usava acrílica, queria passar pra frente.

“Mas você vai vender sua herança?” Brinquei.

“Ela já disse que gostava de mim me deixando as tintas, acho que está bom.”

No outro dia fui buscar as tintas, receosa que estivesse sendo enganada pelo vendedor da madrugada. Ele brincou que o balde era um brinde, mas que estava furado. Inesperadamente, as tintas eram incríveis e eu as uso até hoje com a memória daquela noite. Agora, lembrando-me da última vez que nos vimos, eu estava caminhando pelo bairro, ele estava todo de preto, como se estivesse fazendo uma caminhada também. Estávamos na Salles de Oliveira, ele subindo e eu descendo a mesma avenida. Porque era ele e por que era eu, paramos e conversamos. Fabinho carregava uma garrafinha de água térmica. Pedi um gole, mas não era água. E era assim encontrá-lo - um maravilhoso imprevisto - alguém que transformava água em vinho ou em qualquer outra coisa, um artista que sempre nos resgatava das caminhadas banais.


URRO! - Quais são os projetos que você está tocando nesse 2º ano pandêmico?

KM - Nesse 2º ano pandêmico, lançamos nosso terceiro livro infantil no primeiro semestre, Isabela Adormecida, realização Proac. Agora estou participando de uma exposição virtual chamada “Em Redes”, produção da Artsoul, junto a outros 24 artistas. Escrevendo projetos com amigos visando o próximo ano e produzindo de forma independente no campo das artes plásticas, tentando repensar a relação do corpo com o mundo, este já não como antes, tão pouco se fazendo valer do depois.


URRO! - Falando das tintas em baldes, eu ia escrever que seus trabalhos têm grandes

proporções, no sentido de telas grandes, mas acabo de ver que é apenas a sensação que tenho ao vê-las digitalmente! De qualquer forma, são cores e formas intensas, uma força potente e expressiva em movimento, por vezes um movimento que até parece paralisado, ou que paralisa quem está diante da obra...porque brinca com a dubiedade de perspectivas e sentidos, suspende o tempo! Essa é a maneira como eu me encontro com sua arte. Talvez seja porque, assim como você, minha personalidade/gosto artística/o tenha começado a se formar naquela exposição do Salvador Dali... suas criações são instigantes! Você comentou que está repensando a relação do corpo com o mundo absurdo que se apresenta todos os dias para nós. Como é/está sendo o seu processo criativo? A escolha do suporte, dos materiais... enfim, quais as pistas que você segue para concretizar sua expressão?

KM- Muito interessante seu comentário sobre suas impressões sobre o tamanho dos trabalhos vistos digitalmente. Alguns são modestos no tamanho, outros são bem grandes. Costumo não colocar as dimensões nos trabalhos maiores e ainda não sei por quê.

Agora, para quem sabe conseguir responder as perguntas, vou voltar um pouquinho. Passei um tempo grande, principalmente 2018, pensando em formatos menores e encontrei o papel (gouache s/ papel e óleo s/ papel). Foi quase como um processo de retorno ao lápis e também uma necessidade de controle maior, pois não foi um ano fácil, não têm sido. E por conta desta “desenfreada” de pensar tudo muito grande, que meu processo tomou um caminho diferente. Foi conturbado, pois, imagina - quem põe um freio na sua produção, no sentido de repensar os formatos, está na verdade dizendo: “Calma, você não sabe o que está fazendo. Guarde isso em segredo, pegue o pincel novamente, sinta sua anatomia e comece pelo vazio entre as cerdas.” Talvez venha daí a dubiedade que você anunciou anteriormente: a dúvida. O que principiou uma busca por um movimento estático, este que você descreve tão bem. Uma das coisas que percebi nesse processo é que muitos dos artistas que admiro trazem consigo uma violência eufórica e quis brincar com uma violência do tédio, mas estamos aqui no campo das intencionalidades. Talvez por isso: parece que move, mas não move. Parece que vai chegar, mas não chega. Parece que é homem, mas talvez nem seja mulher. Parece que vai cair, mas nem tem peso para tanto. Pensando agora, tem um poema do Maiakovski que diz já no início: “As janelas cindiram a cidade infernal...”. É para mim de um brilhantismo este começo de poema, traduzido, incrivelmente, por Augusto e Haroldo de Campos. Porque as janelas já repartem a visão por si só, no entanto deve se estar por dentro para que esse recorte se concretize de um jeito e de fora para que seja de outro. Assim, movida por recortes e vez ou outra, por campos mais abertos, pensando que se deve, talvez, estar pelo avesso do caos, ou pelo avesso da calma, para vislumbrar as conjunturas do corpo agora, busco construir a vontade que transita no espaço que quase se conclui.

E ao fim desse poema o poeta nos conduz: “...sob os lampiões, entre as cobertas amassadas, a noite desmaiou, lúbrica e nua, e por detrás do sol pelas estradas manquitolou, inútil e indolente a lua.”


URRO! - Em uma frase, qual é teu desejo no campo das artes em Campinas?

KM - Que seja prosperidade compartilhada.


Arrimo flutuante 100 cm x 200 cm, óleo sobre tela (2021)




Estudo Sobre o Tempo 140 cm x 140 cm, óleo sobre tela (2021)




Parede Verde

Óleo sobre tela

70 cm x 90 cm

2021



Errantes

Gouache sobre papel algodão

43 x 43 cm

2020




Carnis levale

Gouache sobre papel algodão

43 x 43 cm

2020




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