Entrevista com Claudio Daniel
URRO! - Como você avalia o momento da crítica literária no Brasil, principalmente a crítica de poesia?
Cláudio Daniel: A crítica literária e o jornalismo cultural no Brasil entraram em eclipse desde o final da década de 1980, quando aconteceu a transição do regime militar para a democracia. Nesse período, os jornais e revistas da grande imprensa se “modernizaram”, adotaram novos projetos gráficos, reformularam seus manuais de redação e foram reduzindo, gradativamente, o espaço dedicado à poesia e à cultura de modo geral, até sua quase extinção. Hoje, o que predomina nos cadernos de “variedades” são as notícias relativas à indústria do entretenimento, às modinhas (editoriais inclusive), não a densidade de textos literários relevantes e o pensamento crítico.
Não por acaso, nesse mesmo período de “modernização” da imprensa brasileira, ela abandona o pluralismo ideológico e adota o discurso único de louvor da economia de mercado e difamação da esquerda, que tanto colaboraram para o golpe de estado de 2016 e a ascensão do neofascismo em 2018.
O que ainda resiste hoje, no campo da crítica literária, são a revista CULT e alguns poucos jornais de pequena circulação, como o Correio das Artes, da Paraíba, além dos artigos e resenhas que são publicados esporadicamente nas revistas eletrônicas, como Mallarmargens, Germina e Ruído Manifesto. Curiosamente, no mesmo período em que a imprensa brasileira se fechou em seu casulo golpista e reacionário, hostil à poesia e à cultura, a universidade pública brasileira se democratizou e os departamentos de Letras se abriram à pesquisa sobre a poesia contemporânea. Hoje, as melhores reflexões sobre os novos poetas são produzidas nas universidades, que são também o espaço privilegiado para a diversidade, o pensamento crítico e à oposição intelectual ao regime de exceção em que vivemos.
URRO! - A que pode ser atribuída a dificuldade histórica no Brasil de divulgação de poesia, principalmente de autores nacionais?
Cláudio Daniel: O Brasil tem apenas cinco séculos de história e desde o início da colonização portuguesa até hoje as elites nunca tiveram um projeto civilizatório, nunca se importaram com a construção de uma sociedade moderna, democrática, inclusiva, soberana e próspera. Ao contrário: desde as capitanias hereditárias, com seus engenhos de cana-de-açúcar movidos pelo trabalho escravo indígena e africano até as atuais fazendas para a plantação de soja e criação de gado, tocadas por trabalhadores rurais que muitas vezes vivem condições análogas à da escravidão, o que importa para essas elites é o retorno financeiro rápido, proveniente de exportações para os países desenvolvidos, aos quais ela sempre curvou a cabeça, em humilde subserviência colonial ou semicolonial. O capitalismo financeiro internacional, o latifúndio e a burguesia urbana, no Brasil, sempre foram sócios, interessados na exploração de todas as riquezas nacionais e da mão-de-obra local, das formas mais predatórias – como vemos hoje com os incêndios criminosos na Amazônia e no Pantanal. Cultura é vista por elas como algo de escassa importância; nos saraus do século XIX, mocinhas tocavam piano e liam romances de José de Alencar, bacharéis faziam discursos pomposos e frequentavam o teatro ou a ópera para desfilarem seus fraques e vestidos longos.
Hoje, os novos sinhôs e sinhás encastelados no poder sequer procuram ostentar a cultura que não têm: preferem sucatear a Funarte, a Cinemateca Nacional, a Fundação Palmares, censurar filmes e perseguir artistas.
Apesar de todo esse triste legado histórico, temos uma rica tradição literária, desde as cartas e sermões de Padre Vieira e os poemas eróticos e satíricos de Gregório de Matos até Augusto e Haroldo de Campos e as novas gerações de poetas e prosadores brasileiros, que fazem de nossa literatura uma das mais interessantes do mundo. Não é qualquer país que tem um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, um Guimarães Rosa, uma Cecília Meireles, uma Clarice Lispector, um João Cabral de Melo Neto. Acredito que a literatura brasileira será mais conhecida, lida e valorizada em nosso país quando, finalmente, tivermos um país, com uma liderança comprometida com a construção de uma civilização brasileira, inclusiva, generosa, solidária, em que todos possam comer, viver, sonhar, ler e consumir cultura. No atual modelo de casa grande e senzala, a poesia continua sendo acessível a muito poucos, infelizmente.
URRO! - A poesia carrega em seu gene a força de lutar contra as formas de fascismo. Por que os fascistas tem tanto medo da poesia? Mande um recado aos fascistas do mundo.
Cláudio Daniel: A poesia sempre esteve relacionada com a verdade e com a beleza, como diz John Keats em sua Ode sobre uma urna grega. Ela é o território das imagens e metáforas raras, das sonoridades e impressões sinestésicas que nos encantam e educam a nossa sensibilidade e imaginação, mas também é o campo privilegiado do pensamento, da logopeia, em que é possível, com poucas linhas, definir toda uma época. Em seu livro Rosa do povo, por exemplo, Drummond tem versos extraordinários como “Esse é tempo de partido / tempo
de homens partidos”, “Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra”, entre outras linhas que sintetizam o Brasil da Era Vargas, submetido à ditadura semifascista do Estado Novo.
Sensibilidade, inteligência, cultura e pensamento crítico é tudo o que os fascistas bovinos e genuflexos aos “bispos” (?) Edir Macedo e Silas Malafaia odeiam; dedico a eles, então, os versos finais de Nosso tempo, de Drummond, de onde extraí, também, os versos acima:
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
URRO! - Como esta hoje o mercado editorial de publicação de poesia? Qual seria o caminho para ampliar e fortalecer o mercado editorial de poesia contemporânea?
Cláudio Daniel: Há novas editoras independentes, que publicam livros de poetas jovens sem cobrar nada, o que já é uma conquista importante, mas a circulação desses livros ainda é precária, por diversos motivos.
A imprensa brasileira não divulga essa produção, com revoltante descaso, as poucas livrarias que ainda existem nas cidades brasileiras preferem colocar em suas estantes best-sellers, livros de auto-ajuda ou toda sorte de subliteratura e nas escolas públicas os estudantes não têm contato com a literatura contemporânea.
O ensino nos níveis fundamental e médio adota um cânone que para as crianças e adolescentes muitas vezes é apenas tedioso. É preciso, em minha opinião, haver uma nova metodologia pedagógica, que torne a poesia atraente aos estudantes. Ao mesmo tempo, claro, há questões estruturais a serem resolvidas: a erradicação do analfabetismo e da pobreza, a adoção de políticas públicas de fomento à leitura e à criação literária, a criação de espaços para a divulgação da literatura em emissoras de rádio e televisão públicas, o barateamento do livro, a ampliação dos espaços para a circulação dos livros entre outras propostas que Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Aleixo e eu próprio, entre outros poetas e escritores brasileiros, sintetizamos no manifesto do Movimento Literatura Urgente, na época do primeiro governo do presidente Lula e que não foram, infelizmente, adotadas, apesar de várias reuniões acontecidas em Brasília com representantes do então Ministério da Cultura. Acredito que estas ideias mantêm hoje a sua plena atualidade.
URRO! - Como poderia ser ampliada a relação do "mundo acadêmico" com a poesia nacional?
Cláudio Daniel: Com a democratização da universidade, iniciada nos governos de Lula e Dilma e interrompida por esse pesadelo que vivemos desde o golpe de estado de 2016 até hoje.
Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curador de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo e diretor adjunto da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Colaborou na revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019), Fuyú (2020), Caminhos do Rio Vermelho (2020) e Marabô Obatalá (2020). Como tradutor, publicou a antologia Jardim de Camaleões, a poesia neobarroca na América Latina. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso. Atualmente, ministra aulas on line no Laboratório de Criação Poética.
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