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Convescote

Não somos feitos apenas de ossos, mas de sonhos, poesia, amor

Por Bruno Zambelli

 

Essa entrevista foi realizada no dia dezessete de julho às treze horas do Brasil, dezessete horas de Portugal, e trata não apenas sobre o processo de escrita de "Pele de Cobra", peça baseada em dois livros de Tenesse Williams: “A descida de Orfeu” e “Camino Real”, mas também trata sobre vida, poesia, ideologia. Se a história, a vida de um homem é resultado de suas forças em luta, Ricardo é um ser humano feito de versos, de prosa e, principalmente, de coragem. Afinal, dedicar sua existência à cultura e às artes é sempre um desafio como ele mesmo explica:


Foto: Patrícia Cividanes

 

“Foi um desafio tremendo porque ro Haroldo pediu que eu criasse o texto trabalhando através do universo do Tenesse Willians, em particular a Descida do Orfeu e o Camino Real, mas que ao mesmo tempo eu pudesse trabalhar com o real, o autêntico, aspectos biográficos do próprio elenco, enfim, uma loucura e um baita desafio. Trabalhar a partir de um autor como o Tenesse Wilians é sempre um privilegio, né? Porque é um dos principais dramaturgos do século 20 e eu, particularmente tenho, além de uma admiração enorme, uma certa intimidade com o autor e sua obra.”


Foto: Luís Belo


Antes, porém, de explicar o espetáculo, seu processo e representação, é preciso conhecer seus mistérios, motivos e desejos envolvidos em sua feitura. Para tanto, é preciso debruçar-nos sobre as duas figuras centrais, o que não quer dizer que existam protagonistas nessa história escrita a dezenas de mãos e centenas dedos, que fique claro, mas Pele de Cobra nasce da amizade e dos desejos em comum do dramaturgo Ricardo Cabaça e do ator e diretor Haroldo Costa Ferrari. Segundo Cabaça:

 

“O começo de tudo é a amizade. O Haroldo é um amigo de longa data. São mais de 10 anos de amizade. Conheci o Haroldo em Portugal, entre 2011 e 2012, através da Daniela, que estava fazendo produção por aqui. Em 2012 houve o ano do Brasil em Portugal: um mega projeto da Funarte que tinha por objetivo divulgar a arte brasileira em Portugal. O principal cartão de visitas da arte brasileira era, claro, a música. Então ocorreram concertos de Milton Nascimento, Ney Matogrosso e muitos outros. Infelizmente não veio o Tom Zé (risadas).


Além da música, o teatro também era muito importante, e a Daniela estava a fazer grande parte da produção dos espetáculos brasileiros: Ines Viana, Babenco, enfim, muitos outros espetáculos e grupos como o Tapa estavam por aqui. E foi nessa atmosfera que conheci o Haroldo, que naquele ano apresentou um espetáculo que a Dani estava fazendo produção. Depois ficamos muito amigos, sempre em contato, sempre com muitas ambições de fazer espetáculos juntos, realizar projetos... Aqui em Portugal chegamos a fazer uma leitura de ‘Viúva porém Honesta’ de Nelson Rodrigues. Mais tarde eu escrevi uma peça sobre um autor e o Haroldo leu enxertos do texto. Enfim, nós sempre mantivemos esse objetivo de trabalharmos juntos num espetáculo.


Aí o Haroldo vem pra Portugal, viver aqui durante uns anos e um contato maior, muito por conta de nossos interesses em comum em autores que nos guiam, como Artaud, Tenesse William, enfim, e o Haroldo estava com imensa vontade de voltar ao Brasil, pois na verdade o Haroldo exilou-se aqui; ele vem pra Portugal quando Bolsonaro vence as eleições e regressou ao fim do governo. É importante lembrar que o Haroldo durante muitos anos foi ator no Teatro Oficina, além de ter trabalhado com outras referências maravilhosas, como o Tapa e Antunes Filho. Creio que tanto Pele de Cobra quanto Rimbaud na África tem isso: são multi espetáculos, que envolvem música, dança, performance, entretenimento, circo, enfim, algo realmente magnifico.


E o Haroldo queria muito realizar isso no Oficina. Aliás, sobre isso, é preciso lembrar duas coisas a lamentar. A primeira, por óbvio, é o tristíssimo falecimento do grande Zé Celso, isso nos marcou a todos. Zé é um artista mundialmente famoso, das pessoas mais importantes para o teatro mundial. Com Portugal ele tem uma história ainda maior, pois exilou-se aqui durante a ditadura e acompanhou a revolução portuguesa, inclusive documentando em vídeo, tornando-se uma figura muito querida para nós, de modo que todos sentimos muito sua partida e todos artistas portugueses se manifestaram sobre sua morte.


Então, na verdade o Haroldo queria que esse espetáculo servisse de homenagem ao Zé Celso, mas não uma homenagem póstuma. Tanto que adiamos a estreia, antes prevista para o dia 11 ou 12 de julho, não me lembro, mas adiamos tudo por conta do Zé. Então, consequência do primeira, a segunda coisa a se lamentar é essa impossibilidade da homenagem em vida, o que torna o espetáculo ainda mais emotivo".


Foto: Luís Belo


Dessa amizade, desse encontro, nasce então a célula que realizará ao lado de tantos outros talentosos artistas o espetáculo que Ricardo concebeu. Sobre o processo, o autor afirma:


“Foi um processo desafiador, porque eu ia fazendo um bate bola com Haroldo a todo momento. Trocando impressões, instruções, indicações... Isso quase que diariamente. Um processo em ebulição mesmo, pois enquanto eu escrevia o Haroldo já realizava o espetáculo, então muitas vezes aconteceu dele chegar e tive uma ideia: vou convidar tal atriz para fazer isso, e aí’ eu incluía uma nova personagem, alterava, ou seja, um processo em permanente construção.


É verdade que tínhamos uma estrutura delineada: a grande base do espetáculo foi feita a partir da ‘Descida de Orfeu’. A personagem principal, que foi feita no cinema pelo Marlon Brando, é um homem que se caracteriza por estar sempre com uma jaqueta de pele de cobra, e tem essa questão da pele de cobra, largar a pele para crescer, então eu discutia com o Haroldo essa questão de que todos nós temos uma pele de cobra, todos estamos sempre em extrema e continuada mutação, transformação.


Aliás, é preciso dizer que nessa montagem está o núcleo fundamental do Arcan’Us. Outro grande desafio foi sair da coisa mais convencional da dramaturgia; isso falando dos originais, das três unidades aristotélicas e tal, então desconstruir essa estrutura, desmanchar essa estrutura presente no Orfeu para nele introduzir o ‘Camino Real’, que tem um caráter bem mais experimental, divido por quadros ou situações. Então foi mesmo difícil, desafiador, trabalhoso.


O ‘Camino Real’ tem personagens fascinantes como Lord Byron, Casa Nova, Esmeralda. Personagens da história da literatura mesmo, e confesso que isso tornou a minha tarefa inglória, cruel, pois tive de escolher entre elas e deixar alguns personagens de fora. Então de alguma forma o caminho real é um sonho do Dom Quixote, uma espécie de regresso a casa, e é quando eles chegam ao caminho real que se dá esse sonho. E foi esse o gancho em que me apoiei pra colocar o caminho real dentro do Pele de Cobra.


Na realidade o espetáculo é uma redenção humana. Ele fala muito dessa redenção humana, tanto Quelroy quanto Walter Xavier, são personagens marginalizadas, excluídas da sociedade, personagens que em dado momento da vida falharam. E isso é a própria vida: se fazemos uma má escolha na vida, dificilmente conseguimos retornar aquilo que chamamos de rota desejada.”


Além da dramaturgia, a política é a outra paixão de Ricardo. Não aquela política engessada, conveniente, burocrática, mas a política enquanto ferramenta de transformação do mundo, compreendida como um meio, um caminho real de se chegar à justiça social e a um mundo mais humano e menos cruel.

“Eu sempre fui militante. Minha militância, que sempre foi de esquerda, vem antes da dramaturgia então é impossível dissociar minhas questões e militância política da minha obra. A política se relaciona com a sociedade de uma forma prática, diária, no cotidiano, mas acaba por ser uma relação temporal e hierárquica. O poder né? A relação das pessoas com a política muitas vezes começa e termina com o voto, entende? Isso é complicado.


Enquanto isso a dramaturgia pode ser contínua, determinante para que a política faça parte da vida das pessoas. Fundamental, eu diria. Me encanta pensar que meus textos possam alterar vidas e pensamentos. Isso me encanta mais do que simplesmente contar histórias”.


Foto: Suzana Chicó


Poesia e política seriam demais para um homem só?


“Acho impossível uma arte despolitizada. Como disse Aristóteles: somos animais políticos. E de fato é isso. O preço do pão me afeta, as pequenas coisas também são políticas, de modo que o teatro, a dramaturgia, também precisam ser políticos, sobretudo nessa hora em que as extremas direitas estão ressurgindo. Creio que o Brasil por enquanto está a salvo disso após o fim da era Bolsonaro, mas a Europa é absurdamente complexa. Há o Vox na Espanha, há a extrema direita portuguesa, que não nomearei pra não dar ibope, mas a coisa de fato preocupa por vários motivos: liberdade, direitos humanos, xenofobia e, principalmente, a crença ao ódio.


A crise de imigrantes na Europa é um ótimo exemplo disso. Fala-se muito desses imigrantes que vem do norte da África, então em 2014 escrevi um texto sobre a travessia do Mediterrâneo e foi muito curioso porque escrevi esse texto para um seminário que ocorreu em Barcelona e no ano seguinte esse mesmo texto foi lido na França. Ai que está: Na França leva-se muito a sério a leitura; os franceses valorizam muito leituras dramáticas, esses ingressos esgotam rapidamente, e foi curioso ver como os espectadores disseram no final da leitura que não é habitual na França terem temas tão evidentes do ponto de vista político. No caso, a imigração, a histeria contra o islamismo, essa extrema direita que prega o terrorismo.


Então a conclusão é a seguinte: eu poderia muito bem tocar de tratar temas mais tranquilos, pensando na aceitação e divulgação dos meus textos, mas sinto que se fizesse isso estaria traindo minhas convicções não apenas a respeito da política, mas também, e sobretudo, minhas convicções artísticas. O incomodo, a crueldade e a agressão são necessários; não estou aqui para maquiar o mundo. Não faço plástica na realidade, deixo claro que se se existe algo hoje que acredito ser necessário combater são as elites; é preciso a cada um dar sua contribuição a essa luta, creio que de alguma forma ‘Pele de Cobra’ é isso: uma contribuição para a luta que travamos diariamente por um mundo melhor, mais justo, mais humano.”


Foto: Suzana Chicó


Sempre político, engajado e coerente, o autor de “Pele de Cobra” sabe que tanto ao autor quanto ao diretor que residem em sua alma, é preciso compreender e dialogar com seu tempo. É, como pode-se notar em apenas duas horas de conversa à distância, não apenas um artista, mas também um ser humano imprescindível aos nossos tempos.


“Minhas inquietações enquanto dramaturgo; talvez a minha grande inquietação seja o agora. Falar do passado, saudosismo, não me interessa. Creio ser um privilégio poder pensar o meu, o nosso tempo, e olhar sempre adiante. Olhar para o mundo e poder contá-lo, compreende-lo e pensá-lo através do teatro: isso é o que me interessa. Maioritariamente eu sempre me apego a temas bem sensíveis e atuais: feminismo, fake News, alterações climáticas, violência doméstica, racismo... Tocar em temas dolorosos é necessário, uma arte que se omite é uma arte conivente, covarde! É preciso inquietar o espectador, o leitor.


Apenas provocando o artista pode se sentir confortável.  Pensar como a sociedade será daqui há 50 anos por exemplo, ou dentro de determinado tempo, projetar o futuro através do pensamento, da arte, eu acho que à minha maneira fiz isso com fake news, Inteligência artificial, alterações climáticas. Dialogar com o nosso tempo e o tempo futuro”.


Foto: Aline Macedo

 


Bruno Zambelli é escritor, diretor teatral e ator.

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