A morte do tarahumara
Por Aderval Borges
Tentarei fazer justiça à sua postura pessoal sempre muito crítica. Portanto, este texto é também uma leitura (crítica) não só dele, mas do que foi e do que representou o teatro de vanguarda de sua época.
(Z)é difícil…
Em primeiro lugar, “é difícil” aceitar que ele tenha partido de forma tão brutal. Fizeram metáforas sobre a presença avassaladora do fogo em sua vida. No Teatro Oficina em 1966 e agora… Crenças à parte, é difícil engolir a estupidez da fatalidade e o quanto somos frágeis diante dela.
Zé Celso foi “difícil” tanto para quem esteve do seu lado quanto contra. Briguento, autoritário, persistente, competitivo, às vezes confuso, e bastante esperto, quase impossível de ser dobrado.
O olhar e o gesto
Que o diga Renato Borghi, parceiro dele desde a fundação do Oficina. Dividiram a liderança do grupo na fase áurea, de início dos anos 1960 ao início dos anos 1970. Uma década juntos! Separaram-se depois de muitas brigas.
Outros importantes integrantes do grupo que se afastaram estavam com Zé Celso desde a época em que ele deixou o amadorismo do teatro de movimento estudantil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco… Isso no final dos anos 1950… Para migrar para o endereço da rua Jaceguai, Bela Vista (Bixiga), em São Paulo, onde a companhia se profissionalizou e se mantém até hoje.
Por trás de toda aquela aparência de camaradagem, simpatia e sociabilidade, ele incomodou um bocado de gente por sua entrega total ao teatro no qual acreditou.
Sílvio Santos, o Homem do Baú, foi de todos os oponentes aquele com quem ele mais se confrontou. Suponho que houve um misto de admiração e raiva entre os dois. Não se davam tão mal nas conversas. Divertiam-se até com aqueles bate-bocas e ironias. Sílvio o rebatia com veemência, mas em determinados momentos caía na gargalhada, porque não tinha como não achar Zé Celso divertido. Prosseguiam naquele jogo e não chegavam a acordo nunca. Por provável teimosia de ambos os lados.
Vejam o vídeo no link abaixo de um dos vários encontros de negociações entre eles. Este, intermediado pelo então prefeito João Dória.
No vídeo é possível ver o quanto Silvio jogava pesado. Nunca deixou de ameaçar o Oficina com seu poder econômico. Terrenos no entorno do teatro são dele. Queria cercar o pequeno prédio do Oficina por grandes projetos. Ora um shopping, ora um condomínio de escritórios. Ou até abrir uma entidade assistencial no local para atrair os frequentadores da cracolândia só para foder de vez com o Oficina.
Zé Celso, por seu lado, procurava inverter os papéis e envolver Silvio como financiador benemérito do seu teatro, como se essa fosse a única solução viável para diluir as muitas diferenças. Silvio tinha desconfiança enorme de que Zé Celso queria-lhe passar a perna. E queria mesmo! Por isso, sempre ia a esses encontros acompanhado por advogados e pelo seu amigo Carlos Alberto Nóbrega.
Acredito que nem agora que Zé se foi, Sílvio, que já anda pelo bico do corvo, seja capaz de abrir mão de seus planos e encampar qualquer tipo de acordo com o Oficina. Talvez isso role no futuro com Patrícia Abravanel, administradora-herdeira principal dos seus bens, que parece mais maleável que o pai.
No início do vídeo, Silvio debocha de Zé Celso que chega ao encontro com um poncho verde-amarelo. O Homem do Baú diz que ele está mais parecido com um mexicano. Zé diz que não é nenhum mexicano e, sim, um “tarahumara”.
Só quem é de teatro sabe a quem ele está se referindo. Menciona a marcante experiência de Antonin Artaud (1896-1948) com essa tribo indígena mexicana na década de 1930, que resultou em vários textos do francês, dentre eles Os Tarahumaras e a peça radiofônica Para Pôr Fim ao Julgamento de Deus.
Antonin Artaud foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro e cinema francês de inspiração anarquista ligado ao surrealismo, do qual foi expulso por ser contrário à filiação ao Partido Comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um dos principais escritos sobre a arte do teatro no século XX, referência de grandes diretores como Peter Brook, Jerzy Grotowski, Eugenio Barba e o próprio Zé Celso.
Antonin Artaud
Muitas outras pessoas, além do Homem do Baú, se encasquetaram com Zé Celso por motivos diversos. Nunca fui íntimo dele, não cheguei perto de ser e nunca quis sê-lo. Entretanto, estive sempre próximo do que ele foi e do que foi o Oficina. Mesmo sem ser frequentador assíduo do seu espaço e sem sequer ter visto os últimos espetáculos ali encenados.
Na adolescência, comecei a fazer teatro em São José do Rio Preto (SP) motivado – como muitos na época – pelas “viagens” do fértil teatro de vanguarda que compunha o repertório cênico do final dos anos 1960. Época marcante da qual fazia parte o Oficina.
Tinha admiração por todos que ajudaram a criar a base inicial do grupo: Esther Góes, Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Amir Haddad, Luiz Antonio Martinez Corrêa, o irmão, e numerosos bons atores, encenadores e técnicos em teatro que passaram por ali. Vários! O ator José Wilker, por exemplo, participou de montagens do Oficina e também do inovador Teatro Ipanema, no Rio.
Etty Frazer e Renato Borghi em O Rei da Vela
Também eram muito bons os componentes do Teatro de Arena em São Paulo, do citado Teatro Ipanema carioca e do bando de bailarinos, músicos e atores do Dzi Croquettes.
Integrantes do Arena reunidos diante do teatro
O Teatro Ipanema de Rubens Corrêa e muitos outros
Fora do Brasil, havia o Grupo Lobo da Argentina, o Living Theatre norte-americano e os catalães de La Furia dels Baus. Encontravam-se em evidência encenadores altamente diferenciados como o norte-americano Bob Wilson, o inglês Peter Brook, o alemão Peter Weiss, o polonês Jerzy Grotowski, o italiano Eugenio Barba e o genial argentino Victor García, que trabalhou entre nós e foi bastante influente por aqui, sobretudo por sua estupenda cenografia.
Victor García
Sua montagem de Cemitério de Automóveis, de Fernando Arrabal, no Brasil, é considerada pelo mundo como uma das melhores do teatro de vanguarda daquele período. Ele também montou por aqui As Criadas e O Balcão, de Jean Genet, e Yerma, de Federico García Lorca.
Cemitério de Automóveis
Aquele foi um período de dramaturgos de ideias, que procuraram renovar a forma de escrever para o teatro. Nelson Rodrigues estava em plena produção. Houve o ressurgimento da dramaturgia de Oswald de Andrade. Bertolt Brecht continuava muito influente, assim como os citados Fernando Arrabal e Jean Genet, Samuel Beckett, Eugène Ionesco e outros.
Oswald de Andrade
Bertolt Brecht
Até participar da criação do Grupo Pedra, em Brasília – o qual se enveredou para pesquisas sobre o teatro farsesco medieval e suas várias vertentes – procurei imitar as realizações do Oficina ou seguir os passos de pessoas que compuseram o grupo. Minha admiração a distância por eles foi da paixão cega na adolescência à crítica na maturidade.
De quando migrou para a rua Jaceguai, no início dos anos 1960, até o exílio para a Europa mais ou menos uma década depois, o Oficina foi um feliz ajuntamento de pessoas muito talentosas e de alto repertório. Os quais protagonizaram uma época de intensa criação coletiva e, também, de intensos quebra-paus.
Zé Celso não era então a única cabeça pensante no grupo. A rivalidade maior era entre ele e Borghi, mas havia discussões internas e discordâncias de todos os lados. Depois que se desfez esse ajuntamento inicial, Zé se tornou a voz do Oficina. Mas nunca mais teve em torno dele gente com tão alto potencial criativo.
Por consequência, nunca mais o Oficina montou espetáculos tão marcantes quanto “Rei da Vela”, “Galileu Galilei”, “Na Selva das Cidades”, “Roda Viva” e o contraditório, inacabado, mas brilhante “Gracias, Señor”.
Rei da Vela
Galileu Galilei
Na Selva das Cidades
Roda Viva
Gracias, Señor!
Depois da prisão de Zé Celso e um exílio muito louco da trupe pela Europa, até chegar à África, o ajuntamento de origem deixou de existir. A partir daí Zé personificou a companhia e mudou até o nome para Oficina Usyna Uzona. Sem oponentes internos do mesmo calibre dos que se foram, ele passou a ser o próprio Oficina. Quando se falava do grupo ou do teatro, sempre era em função do seu nome.
Comecei a fazer teatro em São José do Rio Preto inspirado naquele Oficina das várias cabeças pensantes. Cuja última ação coletiva foi sair pelo Brasil seguindo a trajetória da mitológica Coluna Prestes, a fazer doideiras mil em pleno Regime Militar e a reunir material para “Gracias, Señor!”.
Oficina nas ruas
Nessa época o grupo deixou o espaço fixo na Jaceguai e encarou o “te-ato”, ou seja, a interação cênica com a realidade nas ruas e praças pelo país afora. Coisa parecida ao que fazia seu ex-integrante Amir Haddad, com o Grupo Tá na Rua, porém estrito à cidade do Rio de Janeiro.
Amir Haddad e o Grupo Tá na Rua
Os conflitos entre os integrantes do primeiro Oficina não eram só de caráter pessoal; eram, principalmente, por diferenças conceituais sobre como fazer teatro. Zé Celso tinha seu conceito ritualístico artaudiano para o qual alguns convergiam; mas outros não, porque tinham os seus próprios conceitos.
Havia questões muito bem fundamentadas de todas as partes, tanto que seus principais oponentes haviam sido também seus principais parceiros: o citado Borghi, seu próprio irmão Luiz Antonio, Fauzi Arap e Amir Haddad. Todos saíram para criar suas próprias escolas de encenação, com características distintas do que continuou a ser feito pelo Oficina sob a batuta de Zé Celso.
Luiz Antonio Martinez Corrêa
Fauzi Arap da época do Oficina
Claro que Zé Celso, com sua alta capacidade agregadora, nunca esteve só. Sempre manteve em torno dele numerosos colaboradores, porém cada vez mais jovens e não tão contestadores quanto eram os antigos.
Depois do episódio do incêndio, em 1966, o Oficina passou por consecutivas reformas, até ser totalmente reconstruído a partir do projeto inovador de Lina Bo Bardi e Edson Elito. Hoje parece uma rua atravessando um teatro e se servindo de palco. O público fica, em diferentes alturas, nas laterais dessa rua/palco e os atores interpretam para os dois lados.
Os arquitetos Lina e Edson procuraram aproximar o teatro como espaço do ambiente de rua alusivo ao conceito de “te-ato”. Também tiveram como referência o modelo de teatro popular elizabetano, como o Globe Theatre de William Shakespeare, que colocava público e atores lado a lado, em diferentes dimensões e altura. A obra só foi concluída em 1994.
Oficina atual
Paralelo a tudo, rolaram as brigas de sempre com Sílvio Santos, as quais se estenderam por décadas. Fui um dos muitos que lá estiveram na rua Jaceguai para prestar solidariedade à batalha de Zé Celso/Oficina contra o Homem do Baú.
Foi quando comecei a ficar decepcionado com as posturas de Zé. Parecia se lixar para o fato de dezenas de pessoas vinculadas de várias formas ao teatro, mas não diretamente ao Oficina, se darem as mãos por ele. Saíamos em passeatas pelo Centro de São Paulo a clamar pela preservação do teatro e pelo seu nome, enquanto ele ficava no trono, lá na rua Jaceguai.
Quando meu grupo Verdadeiros Artistas montou os dois espetáculos – Curva da Tormenta e Síntese e Surpresa – ele foi convidado; mas, que eu saiba, não foi vê-los.
O primeiro espetáculo, de criação coletiva, era referenciado no construtivismo russo do diretor e cenógrafo Vsevolod Meyerhold, na ideia do duplo criada por Artaud, entre outras fontes. E o segundo, no teatro de “átimos” (peças curtas de alta precisão cênica) dos futuristas italianos.
Mas fiquei mesmo puto com Zé Celso quando esnobou João Baptista César, que trabalhava para a revista Palco e Plateia. João ficou horas tentando falar com ele na rua Jaceguai. Zé Celso não o atendeu. Se João aparecesse por lá pela Folha de S.Paulo, na certa o atenderia.
João permaneceu num boteco ao lado do teatro. Não o deixavam de forma alguma entrar. Na falta do que fazer, tomou uma, mais uma, mais outras e a acabou trêbado. Enquanto isso, escrevia à mão o texto da reportagem sobre como não conseguira entrevistar Zé Celso.
A linguagem do texto, conforme a bebedeira avançava, vai-se diluindo; assim como diluíam suas esperanças de ser recebido. A certa altura, era ele que já não tinha condições de entrevistar o diretor devido ao estado de embriaguês. O texto foi publicado da forma como foi manuscrito e ficou muito bom.
Para nossa surpresa, Zé Celso apareceu no coquetel de lançamento da edição na rua Major Diogo, a poucos quarteirões do teatro, e adorou o texto de João. De bom humor, considerou acertada a decisão de não tê-lo recebido, pois dificilmente uma entrevista seria mais interessante do que o que fora publicado.
Capa de Palco e Plateia com Caca Rosset
Fui ver Zé Celso pela última vez em Campinas, numa palestra na qual tentei entrevistá-lo para um veículo de uma universidade da qual era assessor de imprensa. Ele me esnobou e também não me atendeu.
Havia chegado antes para isso. Assisti à palestra com fortes desejos de saltar na jugular do palestrante. No final, bati boca com ele e o chamei de “Zeus Excelso”. Mas ele não deu a menor bola e saiu para comemorar com um bando de admiradores.
Daí por diante, desisti de vez de tentar acompanhar a entourage do “Zé difícil”. Mas lógico que não fui doido de deixar de admirar seu trabalho, nem de me excluir do seu farto contingente de defensores.
Zé Celso era esperto em vários aspectos, inclusive para utilizar a mídia quando isso lhe interessava e parecia favorável. Mas era ele quem armava a cena, para expor ao grande público o teatro conforme ele via.
Um dos episódios marcantes foi a estreia de Bacantes, na qual as atrizes “comem” Caetano Veloso. Trata-se de uma alusão a um trecho ritualístico da peça de Eurípedes. Aquilo foi “improvisado” até certo ponto.
Era um dia em que se permitia a entrada de equipes de TV, fotógrafos etc. Só Caetano não sabia de nada. Despiram-no e uma moça cedeu os peitos para ele, que os chupou teatralmente. No final da cena, aparece Caetano pelado procurando peças de roupas espalhadas pelo palco. Essas cenas estão disponibilizadas no youtube:
Outro episódio foi a homenagem paulistana no Oficina a Fernanda Montenegro, a diva carioca da era rodrigueana do teatro, com a presença de Sérgio Mamberti (ex-Arena), Antônio Fagundes (da Companhia Estável de Repertório) e outros figurões do teatro:
Fiquei mal à beça com o episódio recente do falecimento de Zé Celso. Ninguém merece terminar a vida dessa forma. Se ele quis nos pregar uma peça – escreveram isso – me desculpe por destoar, mas detestei o final. O bom mesmo é que estivesse vivo, com sua verve um tanto delirante, mas com seus muitos acertos pela prática do bom teatro.
Mais que aquele seu palavrório ininterrupto, Zé Celso foi um encenador com grande visão integrativa das artes cênicas. Era muito cuidadoso desde a escolha dos textos, com traduções – algumas feitas por ele próprio com a ajuda de pessoas que melhor conheciam os idiomas dos autores – adequadas às locuções desejadas e aos aspectos conceituais do projeto de montagem.
Sem contar os textos que ele próprio escreveu, as peças nacionais e internacionais por ele encenadas passavam por várias mudanças de construção de falas, para atingirem os resultados que ele propunha ao elenco.
Zé Celso não foi apenas um bom diretor de atores, como a maioria é. Ele pensou os fundamentos do teatro a cada espetáculo que montou. A seu modo, contribuiu para manter a rica tradição de encenadores e cenógrafos experimentais do seleto time de Gordon Craig, Adolphe Appia, Raymond Roussel, Antonin Artaud, Vsevolod Meyerhold, Bertolt Brecht, Erwin Piscator e os já citados que foram influentes nas décadas 1960/1970.
No tocante à arte de interpretação, algo que sempre o perseguiu foi a ideia ritualística do teatro, de purificação, revelação, redenção, libertação, catarse ou coisa que o valha. Nisso, aproximou-se de alguns conceitos de Jerzy Grotowski e Antonin Artaud.
Nos últimos trabalhos de Grotowski, é inclusive abolido o sentido do espetáculo. Não há atores e expectadores. O teatro passa a ser a experiência por si só de quem nele se encontra, no momento em que tudo acontece.
Jerzy Grotowski
Zé Celso chegou a dizer coisas aparentemente banais, como: “Todas as religiões são lindas!” No sentido figurado, ele realmente acreditava nisso. Mas sua religião era aquela do templo da rua Jaceguai. Como todo bom pregador, ele “vendia” bem a sua fé. Utilizando-se de jargões populares, Zé Celso era gato-escaldado, liso como quiabo, capaz de dar nó em pingo d’água como poucos. Só o Homem do Baú, ladino como só, nunca baixou a guarda para suas inspiradas pregações.
Aderval Borges se diz um recente ex-jornalista. É heveicultor no noroeste paulista, com o propósito de dispor de tempo para se dedicar ao que mais se interessa. Já trabalhou com teatro, roteiros para cinema e televisão, letras para canções e sempre escrevi.
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