Dois cafés e um dedo de prosa
Por Bruno Zambelli
Paulo Freire é potência e delicadeza, elegância e simplicidade, ternura e combate, música e poesia. Paulo Freire é tudo isso sim, e é também muito mais. É Grande Sertão, vereda que nos adentra o peito, mapa de Poty da alma brasileira. Esteja o artista cavalgando no lombo de sua viola, contando causos nos seus shows, ou num quarto em silêncio escrevendo diante do computador; não importa: onde estiver Paulo Freire, fazendo o que for, haverá vida pulsando.
Paulo Freire: um guerreiro da cultura da brasileira que conta a vida como uma história
A entrevista reproduzida abaixo é resultado de um encontro rápido na Praça Durval Páttaro, no distrito de Barão Geraldo, onde, do alto de toda a sua generosidade, o músico e escritor me presentou com uma conversa rápida e dois livros: Selva de sua autoria, e Ame e Dê Vexame, escrito por seu pai, o psiquiatra, jornalista, escritor e gênio da raça Roberto Freire. No tempo de um cigarro Paulo me ganhou com sua fala mansa, seu sorriso acolhedor e seu olhar que parece ver poesia onde a maioria das pessoas só consegue ver horizonte.
O segundo encontro infelizmente aconteceu através da gélida tela do computador, condição imposta pela pandemia de coronavírus.
Nosso papo aconteceu numa dessas manhãs em que o sol vem de mansinho, logo cedo, e vai se espreguiçando pelas bordas das cortinas até nos acordar com uma carícia quente na maçã do rosto. Entre goladas de café, cigarros e muita água, fui guiado por Paulo pelas veredas do Sertão de Guimarães e ali fique com Seu Juquinha, Seu Manuel, as corajosas e combativas mulheres sertanejas e todos os santos e seres que habitam “o fundo do mato” e compõe, através de sua fala, sua escrita e sua música, um Brasil guerreiro, com uma cultura riquíssima e muita disposição para resistir e reflorescer.
Se a cultura brasileira é desde sempre guerra bruta, estamos diante das ideias de um dos mais fecundos e corajosos guerreiros do nosso tempo.
Aproveitem, como nós aproveitamos.
URRO! – Paulo, o seu livro é uma obra de muitos saberes, uma espécie de defesa, talvez até uma ode à sabedoria popular contada através de personagens cativantes, complexos. Além disso ele se passa num período longo da nossa história, começando na época da pandemia de febre amarela e chegando até os dias atuais do coronavírus. Como se deu tudo isso na sua cabeça? Qual início, o estopim da coisa toda?
Paulo Freire - Olha, a centelha que me levou a escrever o livro foi o falecimento de Seu Manoel, meu mestre de viola, a quem dedico a obra. Seu Manuel se encantou no começo de 2020, no dia 21 de Janeiro, e esse episódio me levou a escrever o livro mas antes disso eu já estava muito agoniado em tentar passar os conhecimentos que tive com ele desde que o conheci, em 1977 quando fui morar no Sertão e, posteriormente, em sua casa. Então estamos falando de praticamente uma vida inteira junto dele, né? De início pensei em um disco, afinal a música seria o caminho natural já que foi ela quem cruzou e uniu nossos caminhos, mas senti certa dificuldade em traduzir tudo o que ele representa na minha vida apenas através da música, através da viola. Eu precisava da palavra escrita e não cantada, sabe? Também achava complicado pensar em como passar os ensinamentos que tive na roça, no Sertão, pro pessoal da cidade. Há uma certa dificuldade em falar pro ser humano urbano, que além de outra cultura tem outro ritmo, coisas do tipo ''olha como faz o papagaio, olha como canta a Anhuma''. Então durante muito tempo fiquei matutando sobre isso, mas com a morte dele veio uma certa urgência e a vontade de fazer a coisa ficou muito evidente. Então quando começo a trilar esse caminho decido também que não fazer algo diretamente ligado a ele, mas sim sobre essa relação de discípulo e mestre que estabeleci com Seu Manuel através do aprendizado da viola, mas que se estendeu pra muito além disso. A própria relação com as plantas e os saberes populares vem do Seu Manuel. Então minha ideia foi pegar esses aspectos, essas coisas todas, e pensar uma atmosfera pro livro. Então é a partir daí que nasce a coisa toda: experiências que tive no sertão, conversas, que eu gosto muito de escutar as pessoas, principalmente em viagens, e andanças pelo Brasil. Então, essas histórias, as vivências que tive, as coisas nas quais acredito hoje em dia, tudo isso constrói e compõe essa obra.
URRO! – É um livro completamente pessoal, não? No sentido de retratar experiências e quase documentar algumas curiosidades e ensinamentos que você adquiriu nessa epopeia sertaneja. Além disso, a obra explicita muito essa dualidade que existe entre a cidade e o sertão, o concreto e o fundo do mato. Então como leitor existe essa impressão, embora haja, é claro, o contexto do romance, mas parece que a coisa é bem pessoal nesse sentido. O que há do Paulo na Selva?
Paulo Freire – Então, nesse sentido eu acho que sim, pode ser mesmo bem pessoal. Essa separação mesmo entre a cidade e o sertão, eu tentei focar bem no livro. Tem um troço interessante, que é quando o Seu Manuel vinha cá pra cidade, algumas vezes em São Paulo, outras em Campinas, e eu conseguia perceber nele como era tudo muito diferente do mundo no qual o ele nascerá, crescerá e estava inserido. Porque assim, talvez quando fui pra lá, com 19, 20 anos, eu estivesse mais preocupado com o espírito da aventura do que em perceber essas sutilezas. Eu lembro a primeira vez em que ele viu um Papai Noel: Nós estávamos em plena Avenida Paulista e havia uma exposição em um banco com um monte de figuras de Papai Noel, algumas se mexiam e tal, aí ele me pergunta ''Paulo quem é esse cara?''. Ele realmente não fazia ideia de quem era o Papai Noel, essa figura tão comum pra gente, né? Então juntar esses dois mundos, o conflito entre esses mundos, tinha que estar presente.
Em relação às plantas existem duas questões: o conhecimento adquirido nas conversas, um conhecimento oral, de prática mesmo, afinal quando morei no Sertão não haviam farmácias por lá e as plantas eram os remédios usados na grande maioria das vezes, mas eu também tive uma grande ajuda pra escrever sobre plantas de uma professora da Unicamp chamada Ingrid Koch. A Ingrid é biologa, botânica, e durante a pandemia, conversando com ela, peguei dicas de livros e tirei dúvidas pra poder confirmar nomes e compreender melhor tudo isso. Aí eu fui entendendo também que existe essa grande distância entre o que a medicina da cidade criou e o que é a medicina da roça. Acho que toco bastante nisso no decorrer do livro também, sabe? Essa coisa de julgar ignorância aquilo que a gente não domina ou não compreende. Por exemplo: através dos meus estudos, verifiquei que até o começo do século passado essa distância era bem mais tênue, as duas estavam mais próximas, no entanto daí pra frente elas passam a se distanciar cada vez mais e hoje nós estamos criando novos movimentos pra tentar cruzar esses caminhos novamente, o que eu acho que é a melhor coisa para o ser humano.
URRO! - Interessante essa questão sobre a medicina da cidade e a medicina da roça, tem alguns pontos do livro que vamos conversar mais adiante que deixam isso bem claro. Mas no início da nossa conversa você comentou que a princípio pensou em criar músicas ao invés de um livro, e que achou isso complicado. No entanto a música faz parte do livro, afinal ao fim de cada capítulo há uma lista de musicas para o leitor ouvir. Como surgiu a ideia dessa interatividade e a conversa entre essas duas artes nessa obra especificamente?
Paulo Freire - Isso foi uma ideia da editora, a Bambual. E nasce mesmo daquela coisa mais comum de todas, né? Ade que sou mais conhecido pelo meu trabalho como músico do que como escritor. Então o pessoal veio conversar comigo, argumentando que poderíamos usar a meu favor, a favor do livro, essa fama conquistada como violeiro e me apresentaram essa ideia de criar uma trilha sonora das minhas músicas que encaminhasse o leitor por esse universo. Eu achei a ideia ótima logo de cara e mergulhei na criação nesse quebra-cabeça. Foi uma delícia. Pensar nas nuances, nos conflitos, nos capítulos e escolher as melhores obras do meu repertório, aquelas quem de alguma maneira pudessem criar o clima ou traduzir aquilo que está escrito. Agora, no meu caso Bruno, pessoalmente, eu não costumo ler escutando música, prefiro ter a experiência daleitura e aí sim, depois, escutar a música mas isso também varia muito. Tem gente que gosta de ouvir durante a leitura mesmo, então fica a critério de cada um como ouvir. Não tem regra, sabe? Ouvir antes, durante, depois. Aliás eu gostaria de registrar que a ideia foi da Isabel Valle e eu simplesmente adorei Obrigado, Isabel.
URRO! - Agora vamos sair um pouco do livro em si, apesar de manter o assunto nas estórias, e falar um pouco sobre sua experiência como contador de causo. Na realidade, gostaria de falar sobre as diferenças e as parecências desses dois processos: o contador de causo, cavalgando na oralidade de viola na mão, e o escritor diante do computador.
Paulo Freire - Ah, que legal tocar nisso. São linguagens completamente diferentes, né? Isso me lembra do Chacal, poeta carioca, e de uma poesia dele que começa assim: ''a palavra escrita é uma palavra não dita, uma palavra maldita''. Eu quando conto uma história, um causo, não me ligo nas palavras, não tenho um texto pronto. Eu fico ali, olhando assim, e começo a imaginar, visualizar a narrativa se inventar na minha frente. Já com a palavra escrita é bem diferente. Tem alguns, não sei, nesse livro talvez nem tanto, mas em outros livros eu tento dar mais sonoridade à palavra escrita, sabe? Como se fosse uma pequena voz que ia me ajudando a buscar uma musicalidade nas palavras ao escrever. No Selva pode até ter acontecido isso, mas de uma maneira mais inconsciente. Não houve essa preocupação como em outros livros, mas enfim, são linguagens bem diferentes que se completam de alguma maneira. No lançamento do livro em Campinas, por exemplo, eu li trechos do livros, mas não espontaneamente como faço nos causos, sabe? Eu me preparei, escolhi os trechos e percebi que existem algumas partes do livro que pertencem exclusivamente à palavra escrita mesmo.
URRO! - O contador de causos de alguma maneira influencia ou ajuda o romancista no seu ofício?
Paulo Freire - Eu acho que no meu caso poderia dizer que o escutador de causos ajuda o romancista. Eu gosto muito de escutar as pessoas contarem suas histórias. Por exemplo, quando viajo eu adoro grudar nos motoristas. Os motoristas sempre tem muita história adquirida nesse ir e vir da estrada. Outra coisa que me lembro bastante é do meu pai, Roberto Freire, dizendo que é importante a gente aprender a escutar criativamente, sabe? Colocar a sua atenção toda naquilo, imaginar o que está sendo dito, enfim, colocar histórias dentro de você. No final são sempre coisas que se complementam: a escrita, a contação de história e a música. Acho que o contador de histórias no meu caso vai sempre pra música, sabe? Pra musicalidade. Essas duas artes são quase indissociáveis. Já escritor...
URRO! - São quantos livros até agora, Paulo?
Paulo Freire - Com Selva são 7. Tenho livro pra crianças, livro de causos, livro com disco juntos.
URRO! - Vamos aproveitar que tocou no assunto e lembrar um pouco da obra do seu pai, que eu sei que você faz questão de divulgar e preservar. Roberto Freire foi, alias foi não, é um cara porreta: romancista, anarquista, jornalista, escritor, médico psiquiatra, enfim, uma figura gigante da nossa cultura. Qual a influência que a figura de Roberto Freire e suas ideias na sua concepção de vida, arte, cultura, política?
Paulo Freire – Muita! Não tenho dúvidas sobre isso. Com certeza fui influenciado por ele. Ontem mesmo estava falando com um amigo sobre os livros do meu pai e sempre vem aquela pergunta: "você leu todos?" E eu sempre costumo responder brincando que não só li como fui o responsável por digitar muitos desses livros, bater a máquina mesmo, pois meu pais só escrevia a mão e com lapiseira. Então alguns livros dele eu mesmo bati à máquina e aí eu passava esse original datilografado pro Sergio de Souza, que inclusive foi editor da Caros Amigos, da Realidade também… Acho que nos últimos dois trabalhos do meu pai eu até já tinha computador, mas antes era bater tudo à máquina mesmo. Mas esse trabalho que eu fiz foi muito importante tanto por pegar o texto dele, cru, quanto por depois ter acesso ao texto dele passado pelo Sergio de Souza. Isso foi uma grande escola, né? Agora, em relação às ideias do meu pai, acho que não há uma coisa muito explícita de catequese não, creio que ele foi colocando na minha educação, na maneira de agir. Inclusive eu preciso dizer que não tenho muita memória dele na minha infância, por exemplo. Eram os anos 60, ele muito ligado a cultura, a politica, aos movimentos… acho que ele não dava muita bola pros meninos não! (risadas) Mas da adolescência para frente ele sempre passou a incentivar. A minha ida ao sertão mesmo foi depois de sair da faculdade de jornalismo, sabe? Eu estava assim, meio desanimado com a faculdade, ele foi percebendo, quando resolvi e avisei meu pai que iria largar a faculdade pra morar no Sertão do Urucuia ele simplesmente me perguntou “o Urucuia do Guimarães Rosa? E tá esperando o que, Paulo? Larga logo essa porcaria e vai pro mundo”. Então ele sempre me estimulava muito pra tudo, confesso que minha mãe achava uma loucura isso, mas ele realmente nos jogava pro mundo.
URRO! – Parece mesmo com a figura do Roberto que idealizamos aos ler seus livros. Ainda sobre Roberto, pra contextualizar e fechar o assunto sobre seu pai, ele sempre foi muito ativo politicamente, com ideias contundentes e sempre defendendo seu ponto de vista com muita coragem e força. Por conta disso e da radicalidade de sua obra seu pai foi sequestrado, preso e torturado pela ditadura. Alguém que, como você, passou por isso, vendo o próprio pai deixar o país para se manter vivo sentiu na pele o horror que foi esse período. Como você enxerga esse desgoverno genocida de Jair Bolsonaro, baseado no sucateamento e combate à cultura. Como você se sente ao ver o presidente da nação defendendo um torturador cretino como o Ustra e seus apoiadores pedindo intervenção militar a todo momento?
Paulo Freire – Então, antes de comentar isso eu preciso fazer uma certa justiça aqui. (risadas) Meu pai realmente tem uma obra, é conhecido até por suas e por essas loucuras, mas quem segurava a barra em casa era minha mãe, né? Minha mãe era médica, aliás ela é viva então é médica, apenas não trabalha mais. Mas quando meu pai foi preso e precisou sair do país foi ela quem assumiu absolutamente tudo. Minha lembrança de infância é ela correndo pra lá e pra cá, levando a gente, trabalhando. Então eu acho que pra ter, existir esse Roberto Freire que todo mundo conhece, foi necessário à minha mãe segurar mesmo a onda, em todos os sentidos. A verdadeira força talvez estivesse ali, nela.
URRO! – Um salve pra Dona Gessy!
Paulo Freire – Sobre a ditadura tenho lembranças absurdas, ruins mesmo ,daquele tempo. Acho que se compararmos com hoje em dia, a ditadura tem sim suas coisas enraizadas aqui mas lá era muito pior. As pesssoas tem mania de achar que o passado sempre é melhor, né? Eu tenho hoje a liberdade de colocar no Facebook uma frase como “”Jair Bolsonaro é um filho da puta”, naquela época era impossível se dizer isso sem medo, num botequim, sei lá. Suas idéias eram motivos pra você ser torturado, morto, sequestrado. Meu pai mesmo. Apesar de apoiar a luta armada ele nunca tomou parte nisso, foi preso por ter suas ideias e por defendê-las. Mas assim, antes até poderia ser pior, mas hoje tá uma merda né? Creio que se meu pai estivesse vivo hoje em dia estaria desesperado, berrando, quebrando coisas em casa, porque esse presidente é completamente contra tudo, absolutamente tudo em que meu pai acreditava, matéria prima de suas obras, seja culturalmente e politicamente como em questão do entendimento de mundo e do exercício da própria humanidade. Tá tudo errado, né Bruno? Mas acho que agora é tocar o bonde. Eu vi o Wagner Moura dizendo uma vez algo como “se existe algo bom nessa onda do Bolsonaro é justamente o fato de termos tomado contato com esse Brasil quase desconhecido mas que existe e numerosamente”.
URRO! – As vezes até desanima, né?
Paulo Freire - Sim, é desanimador, mas nos resta tentar compreender o que nos fez ficar assim e tentar melhorar enquanto pais.
URRO! – Você falou sobre a sua mãe, essa figura forte, né? Essa descrição, essa personalidade, lembra bastante a Selva e de alguma maneira a Ludovina também. Essas personagens femininas, mulheres fortes, elas se impuseram a você no decorrer do livro ou já habitavam seu consciente ou inconsciente desde a ideia inicial?
Paulo Freire – Então, essa é um ótima pergunta. Não houve nada planejado em relação à Selva. Eu resolvi me fazer um desafio e desenvolver uma personagem mulher, mas só isso. Talvez o tenha feito pela admiração sim, e por ter tido sempre mulheres muito fortes perto de mim, além de, é claro, ver como o homem é destrutivo e fez tanto mal, inclusive a elas, através dos séculos e ter esperança na figura feminina por conta disso, mas… Essa pergunta realmente eu fico meio que sem saber responder. O que talvez responda ago é a personagem da Ludovina, essa mulher do sertão, forte. Que apesar de ter aprendido muito com o Seu Manoel, é preciso dizer o quanto fique impressionado com as mulheres sertanejas e sua força. Tem ate uma história que vou contar aqui. Eu tenho uma música, o disco se chama “Alto Grande”, a musica inclusive tem o mesmo nome, e esse lugar existe. É, como próprio nome diz, um lugar bem alto, enorme, e eu fui até lá junto de um vaqueiro. Olhando lá de cima, a gente admirando, ele me contou que as mulheres dos vaqueiros subiam o Alto Grande para ficar olhando, esperando a volta de seus maridos que estavam em viagem levando gados por ai durante meses. Quem me levou pra conhecer esse lugar foi o Seu Juquinha, grande figura, e ele sempre falava assim: “vê como é dura a vida dos vaqueiros, Paulo. !, Um, dois, até três meses longe de casa, da mulher, da família. Dormindo ao relento, comendo mal, pobres diabos. A única diversão que poderia haver no caminho era uma ou outra casa de luz colorida, sabe? Mas olha ,pior ainda é a mulher do vaqueiro, que fica na casa, cuida de tudo, da roça, dos filhos, da casa… Quem sofre mesmo é a mulher. E o vaqueiro temque ter em mente que enquanto ele está lá,na estrada, se divertindo numa casa de luz colorida, existem vaqueiros fazendo o caminho oposto, aboiando gado perto da casa de sua esposa que está carente e sozinha”. Então, nesse disco, essa musica “Alto Grande” é um pequeno aboio que diz assim, como vse fosse a visão da mulher do vaqueiro:
“La na val do Alto Grande, meus olho quase seco, de passar outra jornada, esperando meu amor. Foi montado num cavalo, pelejando mais o gado, meu amor volta ligeiro, não me empurra pro pecado”.
Então assim, eu acho também um desafio pegar essa visão de uma mulher arrojada como a Selva, mas também tem esse respeito e essa força da sertaneja, que é a Ludovina.
Selva desvenda um Brasil com dramas reais, humor fino e vida que ensina
URRO! – A gente sempre vem com essa desde sempre, né, que o sertanejo é antes de tudo um forte e tal. De fato o é, mas a mulher sertaneja tem essa força tremenda mesmo, impressionante. Vamos aproveitar essa citação do disco “Alto Grande”, esse gancho, e falar um pouco do seu trabalho como músico. Aliás, vamos começar falando sobre a viola. Ela surge na sua vida nessa viagem ao sertão, certo?
Paulo Freire – Isso. Até então tocava violão e guitarra apenas, inclusive havia estudado na escola do Zimbo Trio, uma escola muito importante, mas eu fui morar no sertão pensando sim em conhecer o som desse sertão, e, claro, tinha em mente que a viola seria o grande instrumento da roça. Sabe que eu até levei uma viola que comprei, né? Mas nunca tinha tocado. Na época eu estava estudando muito o Quinteto Armorial, o Ariano Suassuna, e eu conhecia um violeiro chamado Renato Andrade, conhecia através dos discos, né? Aliás ele faz cada viola linda! Mas meu conhecimento de viola era isso, apenas isso, ouseja: zero. Mas como levei a viola, por lá frequentei rodas de viola, comecei a encostar em alguns violeiros, até que cheguei no Seu Manuel, que se tornou meu mestre não só do instrumento mas de toda uma vida. E o engraçado é que eu passei por uma espécie de desconstrução. Eu precisei meio que desaprender umas técnicas de violão para absorver aquela coisa toda da viola, uma técnica e tanto, um universo completamente diferente.
URRO! – Ai entramos novamente, através das técnicas, nessa coisa do sertão e da cidade diante dos olhos do garoto que você era à aquela época. Fala um pouco sobre isso pra gente. Sobre esse impacto.
Paulo Freire – Então, vamos contar certinho essa história. Eu vou pro Sertão com dois amigos, depois um outro amigo nos encontra por lá. A gente tocava junto e resolveu desvendar, conhecer mesmo o som do grande sertão. Mas isso sem conhecer nada mesmo. Não havia indicação de pessoas que deveríamos procurar, não haviam locais aos quais recorrer, só havia mesmo a ideia de ir até o sertão e conhecer sua música e seus músicos. A gente tinha era apenas a edição antiga do “Grande Sertão: Veredas” que formava um mapa da região onde se passava a trama do livro. Esse Mapa feito pelo Poty, e era uma coisa linda, todo desenhado. Você juntava as duas orelhas do livro e ele se formava. Além do mapa a gente também tinha como base o trabalho desenvolvido pela fotógrafa Maureen Bisilliat, que fotografou e documentou todo o sertão por ali. Com ela nós conseguimos contato, inclusive foi muito atenciosa, e nos indicou um lugar chamado Serra das Araras, onde acontece no dia 13 de Junho uma festa na qual os sertanejos se reúnem pra tocar viola, confraternizar, beber. Mas então era isso o que tínhamos: Serra das Araras, 13 de Junho e o mapa do Grande Sertão feito pelo Poty. Só! Foi realmente uma viagem às cegas mesmo, mas aí você vai conhecendo, se informando, sabe? Na festa da Serra das Araras, por exemplo, nós conhecemos o Seu Juquinha que nos indicou o Porto de Manga, onde ele morava inclusive, um lugar onde haviam muitos violeiros, muita música. E foi através do Seu Juquinha também que conheci o Seu Manuel, que era genro de sua irmã. Então a gente foi ficando, conhecendo, ouvindo histórias e criando um roteiro ao acaso.
URRO! – Conta mais sobre esse encontro com o Seu Manuel, a quem você se refere como mestre.
Paulo Freire – Então, o Seu Manoel não morava no mesmo povoado que o Juquinha. Meu primeiro encontro com ele foi num encontro de músicos do sertão organizado pelo sobrinho do Seu Juquinha exclusivamente pra gente. E nesse dia Manuel já me chamou a atenção por ser muito quieto, muito reservado. Devagar, ganhando a confiança dele, fomos conversando e aconteceu um convite pra ir até a a sua casa prosear, tomar café e tocar viola. Com o tempo eu fui frequentando sua moradia diariamente, até que um dia resolvemos que eu ficaria ali por um tempo. A partir daí a minha rotina era a seguinte: ajudar o Seu manuel na roça durante o dia e no fim da tarde aprender viola com ele. E era algo de alpendre mesmo, sabe? Não anotava nada, não tinha gravador, eu olhava o que o Seu Manuel fazia e repetia na minha viola à minha maneira. Mas de alguma maneira a partir dessa troca virei como se fosse um filho dele mesmo, inclusive sempre estive em contato com sua família desde então. Estamos falando de uma amizade pura, verdadeira, e de 40anos, né? Mas eu acho que é essa coisa mesmo do amor entre humanossim, mas também o respeito e o carinho pelo mestre, pelo aprendizado, e foi isso que eu quis colocar na relação da Selva com seu mestre. E tanto eu quanto a Selva temos essa coisa de tentar de alguma maneira retribuir ao mestre, e isso se dá louvando seus ensinamentos, apresentando o mestre aos seus amigos e conhecidos, documentando de alguma maneira seu conhecimento. Eu creio que consegui fazer isso com o Seu Manuel quando o levei pra fazer shows Brasil a fora, produzi seus discos, gravei suas canções, o cloquei pra tocar em televiso e rádio. Então acho que de alguma maneira eu dei luz a ele como ele deu a mim, sabe? Porque Bruno, a gente tem muito essa cultura de ir até o sertão, gravar e não dar crédito. Villa-Lobos mesmo fez muito isso, e não estou dizendo que o fez por mal, durante muito tempo isso foi normal. Então eu sempre tive isso de que é uma via de mão dupla, sabe? Dei crédito sempre, paguei sempre que pude, inscrevi seu Manuel na Ordem dos músicos, na sociedade arrecadadora de direitos, e venho sempre procurando de alguma forma devolver ao mestre aquilo que recebo dele.
URRO! – Acho importante a gente parar um pouco nesse lance que podemos chamar, sei lá, de apropriação indevida da cultura e das obras sertanejas por parte de gente da cidade. Você chegou a presenciar algo desse tipo enquanto estava lá?
Paulo Freire – Eu vi, vi muito! Isso existe muito. É claro que não vou citar nomes aqui, mas em relação ao Seu Manuel mesmo, por exemplo, eu sei de pelo menos umas seis pessoas, gente importante, que foram até o sertão, ouviram o Seu Manuel, conheceram suas composições, gravaram, e ficou por isso mesmo. Não é apenas uma falta de respeito mas também uma falta de consciência, né? As pessoas hoje em dia tem dificuldade em dar crédito até pra mãe. (risos) Parecem mm bando de filho de chocadeira eletrônica, sabe?
URRO! – A pessoa entende o mundo como o buraco do próprio umbigo, né? E além disso, essa relação de mestre e discípulo não envolve apenas o conhecimento, né? Envolve afeto, como você mesmo disse.
Paulo Freire – Sim, é bem isso. O meu aprendizado com meu mestre foi muito além da viola. Eu tive sorte sim de ter na minha história grandes professores de música. E com todas as pessoas que aprendi muito não havia uma ligação apenas de sala de aula, sabe? Havia uma ligação pra vida mesmo, uma pulsão que extrapolava o instrumento. Você aprende muito mais que teoria musical, você aprende a viver, a estar vivo, e de alguma maneira tentei passar isso no livro também.
URRO! – Voltando ao livro, quanto tempo da ideia até o lançamento? Como foi essa caminhada?
Paulo Freire – Olha, eu tinha muitas anotações, muita coisa. Mas o trabalho mesmo foi de fevereiro de 2020, um mês após a morte do Seu Manuel, até Agosto de 2021. Do final do livro pro lançamento foi tudo muito rápido, porque a revisora do livro trabalha comigo já ha algum tempo e eu mandei o livro pra ela revisar antes mesmo de ter uma editora pra lançar a obra. Eu queria mesmo ver o livro pronto e sabia que ia lançar de alguma maneira. Olha Bruno, eu vou dizer, 90% do meu trabalho foi pensado e produzido de maneira completamente independente. Mas esse livro, até por conta da morte do Seu Manuel, eu queria fazer diferente, e aí consegui através dessa editora do Rio. Depois disso eu conversei com o Kiko Farkas, que é um baita capista e um grande amigo de sei lá, uns 40 anos. Então com tudo pronto na mão da editora, eu acho que em 1 mês eles fizeram o livro e lançamos em Outubro. Então acho que no total foi um ano e meio de trabalho. E isso na pandemia, né? A quarentena me permitiu focar no livro completamente. Não estava fazendo shows, no máximo fiz uma ou outra live, mas o livro todo dia martelando na cabeça.
URRO! – E o processo de criação? Eu, por exemplo, quando escrevo tenho essa mania de flanar, de pensar melhor me movimentando do que diante da tela em branco. Como é o seu processo?
Paulo Freire - Ah eu gosto muito de caminhar também. Caminho todo dia, algumas horas as vezes, e vou pensando, matutando livremente, sabe? Aí a coisa vem.
URRO! – Sim. Sei bem como é. Eu queria falar um pouquinho sobre os sertanejos do seu livro. São dois personagens encantadores e que possuem muito conhecimento popular. Esses conhecimentos são, como você disse, fruto de andanças pelo sertão, de uma vida vivida na estrada, mas como funciona isso? Você cataloga? Anota?
Paulo Freire – Eu sempre me interessei por essas coisas, né? Então apesar de na época do sertão o foco ser a música, eu anotei e gravei algumas coisas sim. Acho que tudo começou quando fiquei doente por lá, não havia farmácia no povoado, e fui tratado apenas através desses saberes do mato. Então comecei a anotar o que eles falavam, o que servia pra que, mas pra colocar no livro tive, como disse, essa consultoria de um bióloga, botânica, professora da Unicamp, de modo que a coisa é uma mistura do saber científico e do saber popular. Qual planta, como preparar, pra que serve… Uma união entre os doutores da cidade e os doutores da roça (risos)
URRO! – Na orelha do do livro, escrita pelo Wandi Doratiotto, há um comentário sobre essa espécie de documentação que você produziu nas suas viagens, o que e me lembrou de cara o trabalho do Mario de Andrade. É por aí?
Paulo Freire – O Wandi é do grupo Premê, antigo Premeditando o Breque, muito conhecido por fazer um comercial da Brastemp que ficou muito tempo no ar mas é também profundo conhecedor de literatura. Mas sobre o Mario, muito legal você falar isso, porque eu tenho uma ligação profunda com a obra dele. O livro anterior a Selva, que se chama “Chão”, foi pensado numa turnê em que fizemos mais de 12O shows por mais de 100 cidades, passando por todos os estados brasileiros. Um projeto grande do SESC. E o livro é uma especia de diário de bordo que eu fiz baseado no diário de bordo do Mario. Também tem o Macunaíma, claro, que li antes de ir pro Sertão e não sai da minha cabeça até hoje. Me encanta a coragem do Mario de Andrade de defender a cultura popular, pesquisar, viajar. Tem um relato dele que acho muito impressionante e muito interessante, que está no “Turista Aprendiz”, esse diário de bordo dele, sobre a primeira viagem que ele fez pra Amazônia, se não me engano. E ele diz assim que precisa voltar pra são paulo pra poder ganhar um dinheiro pra poder publicar o “Macunaíma. Ai você pensa: Porra, se o Mario de Andrade que já era esse geênio do Brasil tinha que correr atrás, é nossa obrigação tentar fazer o mesmo. E essa busca dele pelos tipos populares me fascina. Mario, Inezita Barroso, essa gente é o próprio Brasil, o coração do Brasil.
URRO! – Acho que os músicos vivem na pele a dualidade do excesso de viagem, né? A falta do lar, da casa, mas também a possibilidade de ter o Brasil na sola do sapato. Qual papel da estrada, da viagem na sua criação?
Paulo Freire – É preciso gosto em viajar e também disposição pra andar, que não é fácil correr esse Brasil nosso, não. Eu gosto muito de viajar. Agora mesmo estou morando num lugar que seria provisório, era pra ficar seis meses, mas aí rolou a pandemia tudo o mais e cá estou dois anos. Então eu penso assim: eu nunca tive muito bem uma casa, sabe? Acho que sou meio jabuti, carrego minha casa em mim, mas to ficando velho e precisando parar. (risadas) Mas pra minha arte a viagem é fundamental porque ‘preciso conhecer pessoas, lugares, tipos, sabe? Esse mundo tem muito assunto e assunto vira arte.
URRO! – Pros nossos leitores que com certeza vão se jogar na estrada e no universo de Selva, o que você tem a dizer sobre essa obra?
Paulo Freire – Bom, eu acho que é um livro que aborda um período bem longo da nossa história, né? Ele começa na epidemia de febre amarela, no interior de São Paulo, e vem até os dias atuais com o corona, a pandemia. Creio que consegui fazer uma obra atual, e que deixa uma coisa meio no ar com seu fim. Mas, basicamente, é a história de dois personagens que andam em paralelo, essa história desse homem do sertão, sua trajetória ate virar mestre, e uma busca meio louca de uma estudante apaixonada por planta mas que é totalmente urbana. Uma obra sem freio, baseada no instinto, a respeito do encontro desses dois personagens e desses dois mundos. Sem contar, e não dando spoiler, a questão da Ludovina, que eu vejo hoje como a própria natureza nos mostrando que hoje em dia precisamos prestar atenção em algumas coisas que estamos deixando pelo caminho. Em suma, é uma obra feita com muito carinho, em defesa do popular, do humano e do sertão e de seu povo. Uma obra que representa exatamente aquilo em que acredito e pelo que tenho lutando em todos esse anos de carreira, seja na musica, na literatura ou na contação de causo.
Bruno Zambelli é escritor, diretor teatral e ator.
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