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Convescote

Atualizado: 23 de jun. de 2022

Entrevista Cláudio Willer



A ideia surge do encontro, do deslocamento até o outro, da comunhão, se possível alcóolica, entre humanos. Uma conversa despretensiosa, um brindar de copos amistoso, um piquenique num fim de tarde qualquer deste meio de outono. Convescote: um diálogo interativo, tão simples quanto delicioso, mas impossível nestes tempos sombrios de isolamento. Como todos nessa pandemia, nós também nos adaptamos diante do caos e da impossibilidade. Por isso, nosso primeiro ‘Convescote’ deu-se assim, meio de longe, dividido em dez perguntas e uma iluminação. Sabemos que é pouco, ainda mais diante da importância e da vasta obra do entrevistado. Há sempre muito mais a dizer, muito mais a se investigar, afinal, como o próprio poeta decreta em seu poema É assim que pega, escrever ainda é pouco; sempre falta algo. No entanto, apesar do curto espaço, da readequação e da distância a entrevista com o poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer cumpre seu papel de fazer pensar, elucidar questões e até mesmo perturbar o caro leitor. Aproveitem, como nós aproveitamos:


A Revista Urro trata, entre outras questões, de crítica literária. Em algumas entrevistas, sendo a mais acessível delas a concedida a Antônio Abujamra no programa Provocações, no início dos anos 2000, você comenta a necessidade de um retorno da crítica literária à grande imprensa, citando inclusive o grande Silviano Santiago como exemplo. Passados quase 20 anos de lá pra cá, como você vê a crítica literária nos grandes veículos atualmente?


C.W. - Exatamente do mesmo jeito. Há artigos de qualidade sendo publicados, destaco o Aliás, do Estadão, mas isso é pouco! Havia lembrado do tempo – recente – em que tinha o Ideias, do JB, suplemento de leituras do JT, etc... E que artigos tinham mais penetração e circulação. O meio digital ajuda, é claro, principalmente ao repercutir artigos de qualidade, mas o ideal, infelizmente inalcançável, seria uma soma das duas coisas: os espaços impressos e a circulação em páginas de internet.


Na mesma entrevista você faz um comentário interessante a respeito da diferença entre o crítico literário e o crítico universitário. Ainda é possível fazer essa distinção ou o tempo exigiu que houvesse uma espécie de fusão entre os dois tipos de críticos?


C.W - Observo mais professores universitários escrevendo feito gente. Quanto aos periódicos universitários, acho que essa possibilidade, de poder consultar on line, ajudou.


Você é um caso raro, ao menos no Brasil, de autor que possui uma produção de qualidade e reconhecimento incontestáveis em diferentes frentes: poesia, ensaio, crítica e tradução. No entanto nos últimos anos a sua produção crítica e ensaísta mereceu maior dedicação do que a produção poética. Isso se deve a uma escolha pessoal ou a oportunidades e convites editoriais?


C.W. - Ensaio, quando surge a oportunidade, me pedem. É o caso de Geração Beat (L&PM) e de artigos em coletâneas, por exemplo. Além disso o fato de eu haver resolvido fazer doutorado e pós-doc rendeu dois livros: Um obscuro encanto (Civilização Brasileira), sobre gnosticismo e poesia, e Os Rebeldes (L&PM), sobre anarquismo mítico e geração Beat. São respectivamente, o doutorado e o pós.


Ainda em relação ao mercado editorial, é possível perceber que na primeira década dos anos 2000 o mercado brasileiro parece ter “redescoberto” a geração Beat. Ocorreram lançamentos de obras como “E os hipopótamos foram conduzidos em seus tanques” de Kerouac e Borroughs e “Visões de Cody” de Kerouac, além de seu livro de reflexão e crítica “Geração Beat”, lançado em 2009. É evidente que o mesmo poderia acontecer em relação a outros movimentos de vanguarda, como o Surrealismo, sobretudo nesses tempos em que há um claro avanço do conservadorismo aliado a ideias fascistas no país. Você acha possível que nos dias atuais, com a dita crise do mercado editorial, ainda seja possível grandes editoras apostarem em escolhas ideológicas para suas edições ou essa pecha fica a cargo das editoras independentes, menos suscetíveis às demandas e imposições do mercado?


C.W. - Tomara que ambos! Que grandes editores ousem, que pequenos editores cresçam. Quanto a grandes editoras, e médias também, espero, ao falar com alguém delas, ouvir mais que clamores e lamentos por causa do calote que levaram de livrarias. Agora, honestamente, acho que poderíamos estar muito pior. Em relação a expectativas mais pessimistas, ainda bem que essas não se confirmaram, ou será que ainda não chegamos ao fundo do poço?


Agora o papo é puramente sobre poesia. No livro “Um obscuro Encanto – Gnose, Gnosticismo e Poesia Moderna” você faz um estudo crítico e poético a respeito da relação entre poesia e Gnosticismo. O misticismo, o ocultismo, as especulações filosóficas e sensoriais são combustíveis indispensáveis à poesia através do tempo? Poderia comentar essa relação?


C.W. - Não... Não necessariamente... Tem poetas – inclusive da estatura de Cabral ou Drummond – que não aceitariam esse tipo de conexão. “A máquina do mundo” de Drummond, por exemplo, pode ser interpretado como um chega pra lá em misticismo e afins. Cabral tem poemas que são manifestos cartesianos condensados. Há uma tendência de que visionários e afins sejam marginalizados, mas me parece que isso está mudando. Há mais leitores de Jorge de Lima, mais cultores de Rimbaud, mais interessados em Surrealismo e Geração Beat. Acho que o Piva, com seu modo enfático de proclamar a supremacia da visão e alucinação, ajudou a quebrar ou a tornar mais elásticas essas barreiras.


A importância de alguns poetas em sua trajetória é inegável. Dentre eles, destaco aqui Rimbaud, Breton e seu companheiro Roberto Piva para lhe fazer a seguinte pergunta: Willer, o poeta é de fato um vidente ou a vidência é uma busca eterna que leva o poeta a seguir adiante no verso?


C.W. - Não. Para cada Ginsberg há um T. S. Eliot, para citar um careta de alta qualidade. Aliás, curioso isso, ele ser tão cerebral e ao mesmo tempo parafrasear, quando não plagiar, um San Juan de la Cruz. O que tenho feito – e tenho mais para publicar – é mostrar o modo como se tocam e, por vezes, confundem gnose, esoterismo, iluminação e criação poética, principalmente pelo desprezo a categorias da lógica, ao princípio da identidade e não-contradição. Enfatizei isso no curso recente sobre William Blake. Aliás, o interesse por algo assim é um excelente sinal.


Esse ano você lançou o excelente “Escritos de Antonin Artaud”, contribuindo para suprir a escassez de obras em português dedicada a esse grande artista. Artaud foi ator, encenador, escritor, poeta, agitador cultural, artista plástico, roteirista e cenógrafo. É inegável que a obra do poeta francês é fundamental para compreender o teatro e até mesmo a arte moderna, você acredita que a radicalidade e a escrita delirante de Antonin Artaud contribuem para que sua obra continue de certa forma desconhecida por grande parte dos leitores brasileiros?


C.W. - Desconhecida? Nem tanto. Acho que especialmente em matéria de teatro existem muitos “artausianos”. Há muitos ensaístas competentes, também diversas edições de qualidade. Quando preparei Escritos de Antonin Artaud, em 1983 (1983!!!), é que não havia nada. Fui de certo modo abençoado, protegido pelas musas, para esse livro ter dado tão certo na preparação, na difusão e recepção da obra.


Você é um dos pilares estruturais da vanguarda poética brasileira e tem a sua obra fundada em temas como liberdade, erotismo e desregramento dos sentidos, tendo como influência os surrealistas, os modernistas portugueses e os Beats, por exemplo. Hoje, o mundo parece ter retrocedido em muitos desses temas. Alguns autores apontam o avanço do neopentecostalismo como causa principal desse processo, outros acreditam que seja efeito do descaso histórico e comprovado de nosso país em relação à cultura. Você, Claudio Willer, tem alguma teoria sobre o “encaretamento” tanto da cultura quanto da sociedade brasileira?


C.W. - POESIA SEMPRE FOI MINORITÁRIA, ainda mais na sociedade burguesa e correlatos. Quanto ao Brasil, veio à tona o que sempre houve: um País com algo de 40% a 70% de analfabetos funcionais. O que esperar a respeito? A história não se move linearmente, é feita de fluxos e refluxos, avanços e retrocessos de toda espécie.

Qual a sua opinião a respeito da extinção do Ministério da Cultura por parte do governo Bolsonaro e dos efeitos dessa extinção? Aliás, qual a sua opinião sobre o atual presidente do Brasil?


C.W. – Sobre Bolsonaro, ter ou não ter Ministério da Cultura daria na mesma. Estaria no cago algum, ou alguma, imbecil do mesmo modo. Bolsonaro é um boçal e ao mesmo tempo um estrategista que soube reativar um componente fascista da sociedade e mobilizar uma parte da população movida pelo ressentimento, ressuscitando uma modalidade de fascismo. O que os ‘Plinio Salgado e afins’ de outros tempos não conseguiram, ele conseguiu. Claro que tem gente investindo nisso, bancando esse jogo, do mesmo modo que fizeram para eleger Trump. Espero que o provável fracasso de seu governo acarrete num refluxo do fascismo. Sua perda de prestígio é um bom sinal, é claro. Precisa passar ou amainar-se a pandemia para que se possa organizar algo. Uma frente democrática, por exemplo – lembro de comícios pró diretas em que cabiam no mesmo palanque Lula, Fernando Henrique e Dr. Ulisses.


No seu Blog Pessoal e redes sociais você fez uma série de indicações nomeadas de “Filmes à margem” sobre películas que não estão em circulação ou estão fora de catálogo. A lista é indispensável, ainda mais nesses tempos de reclusão. Você acredita que a quarentena possa ser um período de reinvenção do ser humano?


C.W. - Não sei, não... Outro dia observei uma rua, Lopes de Oliveira, na Barra Funda, absolutamente vazia em um dia ensolarado. Achei lindo. Mas receio que saindo da quarentena o pessoal vá tirar o atraso. Será um sufoco...


Por fim, poderia nos indicar um poema ou um trecho de sua autoria para finalizarmos a entrevista?


C.W. - Bem recente:


É ASSIM QUE PEGA

Um hotel pode ser o navio fantasma.

Uma árvore, xamânica.

O que dizer de corpos estranhos? Estão aí, sempre.

E dos milagres da síntese?

Não, não é viajar no sentido de deslocar-se de um lugar a outro ou de estar em uma cidade, um lago, enseada, montanha – porém do estado alucinatório que sobrevém e a mais íntima sensação de não estar aqui e haver ido além.

Eu não morri em uma queda de avião

não me arrebentei na estrada

não me afoguei ao atravessar o rio Paranapanema cheio a nado

e aquele barco no canal de Ilhabela não virou nem foi levado pela correnteza

– acho tudo estranho, como foi possível?

Sobram uns poemas, relatos de alucinações sólidas, mapeadas.

O natural é o verdadeiro sobrenatural.

O que escrevi ainda é pouco. Falta uma palestra a ser dada. Uma partitura dissonante a ser entoada.

Falta.


Foto: Victor Moriyama.

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