Em busca do Erico perdido
Por Wanderley Garcia
Naquela madrugada insone, quando tive o primeiro lampejo que resultou em nossa viagem ao Rio Grande do Sul, ansiava por um profundo encontro comigo mesmo. Uma expedição que levasse à redenção de meu passado e à possibilidade de vislumbrar um outro futuro.
Erico não era o único em minha alucinação: com ele estavam seus amigos Jorge Amado e Fernando Sabino. O trio compõe o que eu poderia chamar de santíssima trindade da minha formação literária, política, afetiva.
Mas, o que eu queria ao me atirar (e levar Gloria comigo) em uma aventura de duas semanas em busca de pegadas deixadas pelo escritor gaúcho com quem nunca tive proximidade senão pelos livros que li em minha juventude?
Talvez me falte a coragem de um Cambará para lançar-me ao mundo de peito aberto. Mas não me sinto um Terra, agarrado ao meu pedaço de chão. Quem sabe uma síntese, ou antítese, das duas linhas familiares que compõem a narrativa central de O Tempo e o Vento? Ah, bobagens. Até o velho Liroca me parece mais honesto consigo mesmo que eu.
Desses reconhecimentos e desidentificações podem ter surgido a busca por lembranças da juventude de quando li pela primeira vez O Tempo e o Vento. De fato, não eram somente as paisagens, os personagens, as trajetórias e as aventuras presentes nos livros que eu sondava. Tampouco era de fato o autor que eu desejava esquadrinhar, com suas contradições, dúvidas, inseguranças e certezas, além da incrível capacidade de contar histórias.
Fui em busca do leitor de Erico. O leitor que agora escreve. Aquele que se refugiou em todas as desculpas para não criar. Seguir os caminhos do autor gaúcho foi uma forma de encontrar o escritor escondido em mim e que sempre se esquivou da produção literária.
Erico conversava consigo mesmo no espelho, em diálogos difíceis e provocadores. Colóquios densos em que o outro do reflexo provoca, questiona, contradiz o de carne e osso. Parti rumo ao Rio Grande do Sul enganando-me de que gostaria de encontrar as sobras palpáveis dessas conferências. No fundo, queria ouvir do próprio Erico (o de carne ou o do espelho) as verdades que tenta me dizer o meu próprio reflexo.
De certa forma, deu resultado. Não foram raros os momentos em que Erico falou-me por meio de outras bocas ou objetos. O processo de criação do autor, explicado por sua nora Lúcia, foi fortalecendo a ideia de que escrever é um ofício a que posso me lançar. O próprio Luís Fernando, a seu modo quieto com que nos recebeu, sem nada dizer me provocou à aventura da escrita.
Ao longo dos dias em que percorremos o Rio Grande nos deparamos com expressões artísticas e culturais que alimentaram o desejo de criar e de contar nossas histórias. As obras de arte na casa dos Verissimo, os monumentos arquitetônicos de Oscar Niemeyer, os mais diversos livros e escritores que encontramos pelo caminho, as músicas. Tudo nos foi envolvendo numa atmosfera de produção de sentidos que a racionalidade do dia a dia nos afasta.
No mergulho que demos na vida e na obra de Erico encontramos um vaso comunicante que lá no fundo me fez chegar ao lago de minhas próprias angústias e frustrações, onde também estavam meus desejos adormecidos.
Entrei de penetra no filme Um contador de histórias da série Encontro Marcado com o Cinema de Fernando Sabino. Ali estavam juntos dois autores que me inspiraram não só a viagem ao Sul, mas muitos momentos relevantes de minha vida. Caminhei com eles no campo de trigo, nas ruas do bairro Petrópolis, nas casas e praças de Cruz Alta. O espelho de Erico de repente se transforma, dentro de mim, no espelho de Fernando. E o menino que vejo refletido é o de minha juventude, realizando nas teclas do computador o encontro marcado com o seu tempo e o seu vento.
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No início deste ano o casal de jornalistas Wanderley Garcia e Gloria Cavaggioni se lançou a uma expedição literária em busca de elementos da vida e da obra do escritor Erico Verissimo. Durante 13 dias percorreram o Rio Grande do Sul de leste a oeste onde realizaram entrevistas, conversaram com familiares e estudiosos da obra do autor. Passaram pelas casas onde Erico nasceu em Cruz Alta e onde viveu até a morte, em Porto Alegre. Viram as paisagens descritas nas obras do autor. Desta viagem, que chamaram de Caminhos Erico Verissimo, o casal prepara um livro de crônicas. Este texto é uma prévia do que vem por aí.
Wanderley Garcia é jornalista, professor universitário e doutor em Educação. Criador do projeto @dajanelacultural (dajanela.com.br). Companheiro da jornalista Gloria Cavaggioni, com quem fez a expedição Caminhos Erico Verissimo.
Fotos de Gloria Cavaggioni, reprodução de fotos em exposição no Memorial Erico Verissimo do Espaço Força e Luz, Porto Alegre
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