A vida não é um show de Sinatra
Por João Nunes
No dia em que Frank Sinatra cantou para 130 mil pessoas no Maracanã – 26 de janeiro de 1980 – eu estava em férias no Rio e fui ao Arpoador onde Os Novos Baianos fariam show de graça. Umas três mil pessoas se aglomeravam em torno do palco armado na praia. Elas queriam ver Baby Consuelo cantar. E queriam que chovesse.
Estamos habituados a imaginar que índios têm ritual para atrair a chuva. Se verdadeira ou não, a crença revela algo importante: atribuímos sacralidade à água porque atestamos a importância dela para a sobrevivência e a revestimos de transcendência – água, sinal de vida. A chuva nasce, portanto, do anseio humano pela água bendita e o chamamento dela se realiza no ato sacro das preces e danças.
Na praia, os jovens também realizavam um ritual, mas com intenção nada nobre: desejar que o mais lindo e abençoado fenômeno prejudicasse o show de Sinatra. Afinal, por mais útil e prazerosa que seja, a chuva é força da natureza e pode causar destruição e morte – como o raio é belo e pode ser letal.
Há natural predisposição humana de rejeitar detentores de poder que se impõem sobre nós, como pais, governantes, chefe, polícia etc.
Por que Sinatra? Porque, circunstancialmente, o cantor estava investido de um símbolo: o do poder do excesso, da imposição cultural, do predomínio e da arrogância dos EUA. Sinatra representava um país bélico acostumado a ditar regras e a determinar o certo e o errado, era o poderoso frente ao oprimido, a opulência versus a miséria, a potência mundial impondo-nos um modo de ser. E, além disso, apoiou a ditadura brasileira e nós vivíamos estado de exceção.
Autodenominar América é historicamente correto (Colombo “descobriu” o continente em 1492), mas antipático porque os norte-americanos se apropriaram da denominação que identifica um continente e, não, um país – serem a maior potência mundial lhes deu tal direito, eles supõem. Sou rapaz latino-americano (“sem dinheiro no bolso”) e, para mim, eles continuam sendo norte-americanos.
Há natural predisposição humana de rejeitar detentores de poder que se impõem sobre nós, como pais, governantes, chefe, polícia etc. Assim, crescemos falando mal dos EUA por conta da política imperialista (e a dedicação bélica) e, como tal, impositiva em todos os níveis, da economia à cultura.
Entretanto, ela não ignorava que “The Voice”, fosse ou não norte-americano, era o maior cantor do mundo e tinha gravado disco antológico com Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim.
O fato é, que, para delírio da plateia do Arpoador, as nuvens escuras descarregaram as águas. E, enquanto o público gritava “chuva, chuva, chuva”, Baby Consuelo berrava sozinha: “não, não, não”. É possível que a cantora fosse movida por interesses corporativistas, mas, certamente discordava de imposições culturais de países dominantes.
Entretanto, ela não ignorava que “The Voice”, fosse ou não norte-americano, era o maior cantor do mundo e tinha gravado disco antológico com Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. E, saberíamos depois, que Sinatra declarou ter sido aquele show o grande momento da carreira dele.
Menos mal, a chuva não destruiu nem matou. Chegou para molhar, ser bênção, ser alegria. E, enquanto os jovens que pediam chuva se molhavam no prazer das águas e vendo realizado um mau desejo, o público do Maracanã se deixou ser inundado pela enxurrada que desceu dos céus e se divertiu e dançou como se estivesse em um ritual de agradecimento.
E se “A Voz” passava a própria vida a limpo (“o que é um homem/ senão o que ele tem/ se não ele mesmo, então não tem nada”, da música My Way, dos franceses Claude Francois, Gilles Thibaut e Jacques Revaux), Baby Consuelo tentava (via Assis Valente) aproximar-se da América em gesto simpático de abertura de relação diplomática com o inimigo. (“O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada/ anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato”).
Na praia do Arpoador e no Maracanã a chuva e todos os significados dela (incluindo a beleza) nos molhou a todos e nos lavou a alma.
E, se o mito norte-americano, seguro das raízes se derramava em romantismos (“desconhecidos na noite/ trocando olhares/ admirando-se na noite/ quais eram as chances de nos apaixonarmos”, de Strangers in the Night, de Bert Kampfert, Charlie Singleton e Eddie Snyder), Baby tentava provar (via Valdir Azevedo) que, mesmo periféricos, éramos bons de samba e chorinho. “Brasileirinho chegou e a todos encantou/ fez todo mundo dançar/ a noite inteira no terreiro”.
Na minha família presbiteriana aprendi que não deveria proferir más palavras nem desejar mal para outro. E as justificativas eram precisas: a boca fala do que está cheio o coração e a árvore é conhecida pelos frutos e não há como colher figos de espinheiros e uvas de ervas daninhas. E, garoto, eu morria de medo que meu coração estivesse cheio de espinhos e de ervas daninhas.
Na igreja aprendi que Jesus vivenciou os mais terríveis sentimentos humanos – ira ante os vendedores do templo, por exemplo. Entretanto, o objetivo era compreender melhor nossas contradições porque a essência da mensagem dele se construiu a partir da boa palavra – que nasce do desejo expresso pelo coração.
De cara, me alinhei com a plateia que desejava a chuva e fingi não escutar os “nãos” da Baby Consuelo porque me incomodava agir igual ao menino presbiteriano repetindo que o coração se alimenta dos desejos e, que naquele instante, meu coração estava cheio de más palavras e maus desejos.
“Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”.
Então, me ocorreu a frase de Gerado Vandré no Festival Internacional da Canção (Globo, 1969) à plateia que vaiou o júri por ter desclassificado a música dele, Pra não dizer que não falei das Flores (“gente, a vida não é um festival”). E comecei a gritar “não, não, não”. Não se muda a história negando a história simbolizada em espetáculo grandioso ou posando de vítima em modesta apresentação na praia.
Soube que o cantor norte-americano quase desistiu de cantar, mas resolveu encarar o desafio porque, minutos antes da apresentação, a chuva parou. Ele adentrou o palco e viu que o céu estava aberto. Na praia do Arpoador e no Maracanã a chuva e todos os significados dela (incluindo a beleza) nos molhou a todos e nos lavou a alma. No palco aberto para o céu do Arpoador e do Maracanã os holofotes se misturaram com as luzes das estrelas e nos iluminaram a todos.
No palco do Maracanã, Sinatra evocou o Rio, o Brasil e Tom: “e eu que era triste/ descrente deste mundo/ ao encontrar você eu percebi/ o que é felicidade meu amor” (Corcovado, Jobim/Vinícius), enquanto o povo levantava os braços saudando o famoso morro da cidade.
No palco do Arpoador Baby reverberou: “Eu sou/ eu sou o amor da cabeça aos pés” (Dê um Rolê, Moraes Moreira) e repetiu Assis Valente com um verso enigmático em sua escatologia: “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”. Como se vê, busquei consenso entre os lados usando um tanto de humor e outro de poética porque não queria referendar o litígio atávico e porque seria pretensioso e reducionista resolver os problemas históricos, diplomáticos, políticos e de relações sócio-culturais-econômicas entre Brasil e EUA a partir de dois shows e de um aprendizado de escola bíblica dominical. Afinal, a vida não é um show de Sinatra, a vida não é um show de Baby Consuelo.
Tanto que houve dança na chuva no Arpoador e no Maracanã. Contudo, a arte e o lúdico não resolveram (e nem existem para isso) as diferenças. Talvez, tenham servido para arrefecer ânimos, quebrar resistências, humanizar. Da mesma forma, dançar na chuva, hoje, não amenizará os dramas deste nosso mundo (em especial, o Brasil) em chamas. Mas talvez nos sirva como símbolo da água que lava, da água que é vida. Quem sabe sirva para tocarmos a transcendência: quem beber dessa água não mais terá sede.
João Nunes é jornalista, escritor e crítico de cinema.
Foto promocional d'Os Novos Baianos.
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