top of page
Foto do escritorURRO

Contratempo

Atualizado: 21 de jun. de 2022

Quando a dose dupla é pouco

Por Ernesto Kemp


Lá pelo meio de 1977, eu estava passando o tempo como mais gostava, escutando LPs de rock e lendo o Jornal da Música. Esse jornal, anteriormente, era só encarte de uma revista que se chamava "ROCK: a história e a glória", que trazia biografias muito bem escritas das bandas-monstro, consagradíssimas até então. Em um certo momento, talvez por questões de sobrevivência financeira ou marquetológica, o encarte virou um tabloide e as biografias sumiram… assim mesmo, dissolvendo no vapor púrpura da existência… apenas sumiram.


Pois bem, lá estava eu, provavelmente escutando "The Song Remains the Same" (a música, não gostava do disco), ou "Highway Star", ou quem sabe ainda "Happiness is a Warm Gun", e vi algo que me chamou atenção no jornal: uma foto de moleques na rua de cabelos curtíssimos, ou moicanos, usando roupas rasgadas, correntes, alfinetes, tênis arrebentados, camisetas furadas. Cadê os cabelos compridos dos roqueiros? E nas fotos das bandas, cadê as botas de plataforma com roupas fantasiosas e símbolos místicos? As bandas e público dessa galera nova usavam as mesmas roupas, o pessoal do palco era idêntico ao pessoal da plateia! Hum... tinha coisa aí nesse angu.


Esses caras para mim se transformaram em pecado, prazer proibido brotando em algo totalmente contrário às minhas orientações religiosas da corrente mestra do rock setentista. Uau! Devia ser bom…

Comecei a ler a reportagem. Ela descrevia a cena punk de Londres e a atitude das bandas. Falavam bastante dos Sex Pistols (inevitável), e comentavam algo sobre o disco de uns tais de The Clash. Os caras dessa banda tinham bronca das bandas-monstro. Minha primeira reação foi de indignação: como assim espinafrar meus heróis? E na reportagem falava sobre a polêmica de uma música do disco que descia o cacete nos Estados Unidos. Aí sim, identidade total com a putidão frente aos EU e também com o papo de moleques tocando umas músicas nervosas, com guitarras distorcidas (ôba!!). E essa música tinha como plateia outros moleques iguais a eles. Haviam decretado o fim de solos de guitarra espaciais, com 15 minutos de virtuose digna de Paganini. Na mão desses moleques as guitarras encontravam seus arrepios na pele, ressonando em um muquifo qualquer, e não em ginásticas mirabolantes no braço de um instrumento caríssimo feito especialmente para o monstro-sagrado tocar em um palco sideral.


Esses caras para mim se transformaram em pecado, prazer proibido brotando em algo totalmente contrário às minhas orientações religiosas da corrente mestra do rock setentista. Uau! Devia ser bom…


Em vez de esperar o próximo disco de uma mega-banda, a galera pecadora babava com sede por fitas K7 de bandas novas e totalmente obscuras, que eram puro pau-puro. A troca de fitas era como trânsito em corredor de formigueiro.

Eu também lia jornais da imprensa convencional. Procurava a listinha de filmes na cidade, resultados de futebol, mas, para chegar lá, passava pelas páginas com manchetes que falavam de jornalistas enforcados, outros cuja morte era um milagre como dar um tiro na própria cabeça e depois mergulhar de uma barco no mar, presidentes que se orgulhavam em dizer que cavalos eram superiores ao povo do Brasil, escolhas arbitrárias de representantes políticos, bombas mal intencionadas explodindo no colo de milico, gente que não podia voltar ao país por causa de letra de música, porrada (física e moral) em professores e estudantes , gente presa por ter um mimeógrafo em casa, ou seja, um cenário de terror cotidiano.


Mas… entre 1977 e 1980, tinha um cheiro gostoso no ar. Estava entrando ar fresco pela janela. A volta do irmão do Henfil; guerrilheiro repatriado usando sunguinha de crochê na praia; Z passando no cinema; e a feijoada servida no chão para uma galera com fome de anteontem.


Enquanto isso, em 1979, dois anos depois da reportagem iluminadora, começaram a aparecer nas lojas uns discos que nas capas tinham umas bolas brancas escritas em vermelho "Punk Rock". Ôôôpppaaa. Chegou a hora de matar a curiosidade e cometer o meu pecado mortal. Em um ano acabei descobrindo mais bandas do que havia conhecido ao longo dos meus então infinitos 14 anos de idade. A cena musical do rock tinha virado uma ferveção. Em vez de esperar o próximo disco de uma mega-banda, a galera pecadora babava com sede por fitas K7 de bandas novas e totalmente obscuras, que eram puro pau-puro. A troca de fitas era como trânsito em corredor de formigueiro.


Assim, sem vaselina, saí direto do The Clash para o London Calling.

No comecinho de 1980, finalmente o primeiro disco do Clash entrou nos meus ouvidos, e continuou o ano todo me trazendo doses diárias de energia. Lá mais pro fim do ano, um amigo meu foi pegar algum prêmio em uma rádio, viu um compacto numa mesa com o nome The Clash. Ele lembrou que eu gostava, e pensou que esse treco nunca iria parar no prato do DJ, a rádio era super careta. Ele roubou e me deu de presente. Tinha uma música que chamava London Calling. Em menos de um mês apareceu o álbum nas lojas. London Calling. Caraca… tinha coisa nova no ar de Londres. Eu precisava responder ao chamado. O álbum era dose dupla. Quatro lados de vinil, contendo genialidade e rock de primeira. Mas, estranhamente, o som rouco e nervoso se transformou em umas coisas super arranjadas, mas super vigorosas.


Detalhe importante: o segundo disco do Clash, Giv'em Enough Rope, era apenas um mito, uma lenda que circulava entre nós, nas lojas de "nacionais". Tinha um ou dois exemplares importados lá na 24 de maio, mas nenhum de nós tinha bala na agulha para ir lá e trazer a bolacha. Assim, sem vaselina, saí direto do The Clash para o London Calling. Um coquetel de diferentes elixires, anunciando, sem que ainda soubesse, uma sólida audácia musical. Ok, minha nova religião era mais flexível que a primeira, e as bandas de porão continuavam a chegar nos meus ouvidos. Mas, visto que era assunto religioso, o santo tudo pode, e eu cada vez mais tudo podia com aqueles que me fortaleciam, até ao ponto de emprestar um baixo e tocar com a rapaziada. Agora eu podia. Foda-se se não conseguia tocar a intro de Starway to Heaven no violão. Tudo que conseguia nas minhas tentativas era um som igual a de um cortador de unha. Na banda a gente fazia música nossa. E dava risada o fim de semana inteiro.


Em tempo, o pós-punk também chegava em Pindorama trazendo a new-wave, two-tone, mod revival, rockabilly, eletrônicos não-enfadonhos, pub-rock e uma pitada do que viria a ser a sombria invasão gótica.


Passei o ano de 1981 quase sem um minuto sem música. Era um oceano de sensações novas.


O salto entre o The Clash e o SANDINISTA! foi feito com motor warp no toco.

Tipos em fevereiro, ou março, não lembro direito, de 1981: a namorada de um brô da banda chamou uma galera para tomar uns vinhão chique (com certeza era libfraumilque), adorar Jah e ouvir música. Os LPs novos apareceram na festinha. Meu mano e mentor havia comprado, já fazia uns 3 dias, um treco TRIPLO, isso mesmo, TRIPLO do Clash, que se chamava SANDINISTA!. A falta de uma vitrola nestes dias (lembrem-se, eu tinha um gravador onde ouvia K7s) me impediu de escutar. A festa do vinho era a grande chance. O disco rolou de cabo a rabo. Da 1a. faixa do Lado A, até a última do lado F. Fiquei sem palavras, e bêbado. Quem me deixou sem palavras foi o disco, não o vinho chiquetê. O Clash tinha superado qualquer divisão entre céu e inferno. Rompeu os conceitos de passado, presente e futuro. Misturou manga com leite. Serviu caipirinha de agrião. Pescoço de girafa ao molho pardo e linguiça de urso assada em carvão sagrado do Tibet. O salto entre o The Clash e o SANDINISTA! foi feito com motor warp no toco. Jazz feito apenas com vocais, valsa, um cover obscuro da década de 60, viagens dubísticas, funk, rockabilly, reggae, disco, homenagens à Motown, experiências esquizo, e muito, muito mais.


Tem gente que não sabe, mas um grande culpado por tudo isso, era o Toper Headon, o baterista. Ele estudou música, sabia harmonia, tocar piano, e até partitura sabia ler. Mas ele nunca entrou na maionese setentista. Ele usou o "sei música para cacete" para dividir isso com os outros, sua banda e seu público, e não para aumentar o tamanho do spot de seu holofote.


O Clash mais uma vez mostrava que não era preso ao seu passado musical.

O nome, SANDINISTA!, era um forte apelo à resistência obrigatória frente aos capitãezinhos de plantão. Os do governo e os de fora dele. A resistência vinha esculpida no nome do disco. Quem curtia, era justamente a galera que nos dava sentido de pertencimento, de fazer parte de uma coisa que dava motivo para acreditar que as coisas mudariam. Que os capitãezinhos desapareceriam de esferas que não foram feitas pra eles. Nos dava força para continuar desafiando o complexo de vira-lata, e saber que gatos e cachorros que viram latas são mais fortes do que seus correspondentes de raça. Estes, por causa da especialização genética excessiva se fragilizam e seguem os caminhos contrários ditados por Santo Darwin. Morrem, se arrastando de displasia sem aguentar seu próprio peso, e de vômitos por não conseguir comer e digerir os peixes podres que a vida oferece. Misturar é viver. SANDINISTA! era a mais sonora declaração de liberdade. O Clash mais uma vez mostrava que não era preso ao seu passado musical. Os ideais e atitudes eram mais fortes que a algema com a sonoridade rude das raízes, ainda cristalizada nos seus pés e fincadas no punk rock. SANDINISTA! era uma declaração de liberdade aos ditames de acúmulo de capital de uma grande gravadora. A banda negociou com os tubarões que o disco TRIPLO, isso mesmo, 3 vezes mais plástico, 3 vezes mais papel, cola, tinta, para produzir a bagaça, deveria ter o menor preço possível. Eles abriram mão de direitos autorais para permitir que moleques vira-latas pudessem ter acesso ao banquete fino. SANDINISTA! foi lançado oficialmente em dezembro de 1980. A esperança de mudança, na ocasião, se concretizou SANDINISTA! faz aniversário em dezembro. Uma pena que o aniversário ficou só para a esperança. Uma punhalada nas nossas costas fez com que os capitãezinhos da Nicarágua se apropriassem da bandeira e fizeram tudo voltar 40 anos. Os capitãezinhos daqui também.

Precisamos de outra dose tripla. Qualquer rabo de galo duplo já não é suficiente para vivenciarmos, sem esperança, a volta ao passado do nosso presente.



Ernesto Kemp, por ele mesmo: Quando era criança queria trabalhar junto com o James Bond e fazer as mesmas coisas que ele. Também queria ser astronauta. Ganhei um livro do R.R. F. Mourão chamado Astronomia e Poesia, e descobri que astronomia era irmã da física. A física poderia me levar pro espaço sem que eu pagasse o sapo de ser militar nos EU. Hoje eu estudo neutrinos, estou esperando a pandemia me deixar ir tocar de novo com a minha banda, jogo xadrez pela internet, e vou escrever qualquer coisa que o Lemão e seus asseclas me pedirem. Demoro, mas escrevo.

91 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Contratempo

Contratempo

Contratempo

Comentários


bottom of page