Phósphoro
- URRO
- 4 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Olhar de esperança
Por João Nunes

A revista Época publicou na última semana de junho o conto Futuro do Pretérito, de Fernanda Torres, reproduzido do livro O Mundo Pós-Pandemia, coletânea de textos de vários autores lançada pela Nova Fronteira. Os dias são difíceis, ninguém contesta, mas Fernanda acentua a desolação e reveste a narrativa de uma visão niilista, pois não existem perspectivas; tudo se tornou sombrio em futuro próximo e nós vagamos sem rumo.
O pensamento negativo tem a capacidade de se espalhar feito fogo em terreno seco. Não concordo com esse olhar conformista e vitimizado do narrador do conto frente a vida. E não se trata de falta de empatia com os acontecimentos deste 2020 e com o sofrimento (dolorido para todos), ou ingênuo otimismo, estilo Polyana, ou de um alienado incapaz de interpretar a realidade repleta de medo, ansiedade, escassez e morte.
Para o jornalismo, as notícias boas são as ruins porque atendem à expectativa humana de se alinhar com a baixa frequência trazida pelos fatos negativos, além de aumentarem a audiência
Jornalismo
Para o jornalismo, as notícias boas são as ruins porque atendem à expectativa humana de se alinhar com a baixa frequência trazida pelos fatos negativos, além de aumentarem a audiência. Contudo, elas provocam efeitos nefastos no nosso inconsciente, pois despertam aquilo que temos de pior: ira, depressão, espírito de vingança, insegurança, medo etc.
Desde o início da pandemia, a Globo News exibe 24 horas por dia a tarja “urgente” no alto da tela à direita. Ora, se as notícias se tornaram urgentes 24 horas por dia há mais de seis meses é porque o urgente passou a ser normal. Sendo assim, estamos vivendo o mundo caótico proposto pelo conto no qual urgência virou sinônimo de normal. Mas o noticiário não pode servir de parâmetro para pensar o futuro porque o compromisso do jornalismo é imediatista.
É verdade que logo tivemos a Guerra Fria (o mundo dividido em dois) e ditaduras de esquerda (Leste Europeu) e de direita (América do Sul e Central) e ensaios da terceira guerra.
Política
Não tenho credenciais acadêmicas para sustentar debates sobre futuro do ponto de vista histórico-sócio-político-econômico. Mas, como graduado em teologia e jornalista cultural pré-internet (então, detentor da informação e formador de opinião), ainda sou pretensioso para me posicionar a respeito porque procuro misturar o olhar romântico desse jornalista antigo com a fé – e fé só entende aquele que fecha os olhos para enxergar, ou enxerga o que, antes, os olhos não queriam ver – como diz uma música espiritualista.
É da escuridão das calamidades que aparecem inesperadas luzes. A Renascença surge da Idade Média – também conhecida como Idade das Trevas. Mas pensemos na Segunda Guerra, evento que está um pouco mais próximo de nós: o mundo pós-maio de 1945 era sombrio e desolador. Entretanto, da Alemanha (epicentro do conflito) ao Japão (alvo de duas bombas atômicas), passando pelos principais cenários envolvidos, todos foram reconstruídos e todos se tornaram importantes países.
No plano político, os humanos concluíram ser impossível continuar resolvendo conflitos por meio das armas e criaram a Organização das Nações Unidas – hoje, pode-se fazer restrições à entidade, mas em 1945 era o melhor a ser feito. Três anos depois a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, importante documento que, desde então, rege nossas relações com o outro. No ano seguinte, criou-se o Estado de Israel, atendendo aos judeus, principais perseguidos dos nazistas. É verdade que logo tivemos a Guerra Fria (o mundo dividido em dois) e ditaduras de esquerda (Leste Europeu) e de direita (América do Sul e Central) e ensaios da terceira guerra.
Na literatura, algumas obras clássicas se abasteceram do espírito pessimista pós-guerra, que pregava o fim do mundo e ausência do amanhã.
Cultura
Na literatura, algumas obras clássicas se abasteceram do espírito pessimista pós-guerra, que pregava o fim do mundo e ausência do amanhã. A Peste, do franco-argelino Albert Camus, lançado em 1947, fala de resistência e solidariedade, mas o horror da guerra é o protagonista. Em 1984, romance do britânico George Orwell, lançado em 1948, emana distopia. Esperando Godot (do irlandês Samuel Beckett, 1952), marco do teatro, segue os passos da desesperança. Godot, corruptela de God, é símbolo de um Deus que não virá.
O contraponto ao caos são as luzes que apontam caminhos, saídas criativas e carregadas de esperança. O Aleph (1949), do argentino Jorge Luís Borges, trata de iluminação rara na literatura. O Apanhador nos Campos de Centeio (1951), do americano J.D. Salinger, embora individualista, virou referência do jovem em busca de espaço no mundo em transformação. Em 1956, o também americano Allen Gisnberg, publica O Uivo, manifesto beat que revoluciona a poesia e lança luz sob a causa gay. No mesmo ano, Guimarães Rosa, publica o mais importante romance brasileiro, Grande Sertão: Veredas, história de amor em meio à guerra que antecipa o tema do gênero – Rosa foi cônsul na Alemanha antes da guerra.
O nascimento do rock, em 1949, revoluciona a música; o ritmo lança um grito reprimido – ecos da guerra, vozes dos interiores (country) e dos negros (blues e R&B) – e virou modo de vida. Nas artes, o espanhol Pablo Picasso exibe a obra antibelicista Massacre na Coreia (1951). No cinema, em 1945 e resultado de outra opressão, o fascismo, surge o neorrealismo italiano, que influenciaria a Nouvelle Vague (França) e o Cinema Novo (Brasil) – todos eles manifestações políticas (a Nouvelle Vague menos) e estéticas.
Alguns grandes cineastas surgiram no pós-guerra. Menciono primeiro aqueles que falaram do conflito, e dos quais cito obras referenciais: Roberto Rossellini (o antifascista, Roma, Cidade Aberta, de 1945), Vitório De Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948, sobre a tragédia do pós-guerra) e Luchino Visconti (Rocco e seus Irmãos, 1960, retrato da Milão industrializada depois da guerra). Na França, um dos pilares da Nouvelle Vague, Alain Resnais, inicia a carreira com documentário sobre o holocausto (Noite e Neblina, 1953), e se consagra com a obra-prima Hiroshima, Mon Amour (1959).
Entre os que evitaram o tema, destaco Federico Fellini. Os Boas Vidas (1953) trata do drama do rapaz que troca o interior pela cidade grande. O sueco Ingmar Bergman aposta no humor em O Sétimo Selo (1957) – o protagonista joga xadrez com a morte; o britânico Stanley Kubrick, que começa com filme de guerra (Medo e Desejo, 1953), culmina com a preciosidade 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), sobre o sentido da vida. Claude Chabrol, na França, inaugura a Nouvelle Vague com Nas garras do Vício (retorno de um rapaz à cidade natal, 1958), François Truffaut, em Os Incompreendidos (1959), fala de adolescente desajustado, e Jean-Luc Godard muda o cinema com a história de um anti-herói em O Acossado (1960).
Existe um profeta bíblico chamado Jeremias, que um livro com o nome dele e, um segundo, chamado Lamentações. Identifico-me com ele no arrebatamento emocional, nas muitas lágrimas e no poder de expressar o sofrimento humano.
Teologia
O Vaticano II, as comunidades de base, as teologias da Libertação e da Esperança, o ecumenismo entre diversas vertentes religiosas e toda a reflexão teológica progressista gestada fora do ambiente das igrejas tradicionais foram estabelecidos nos anos 1960 – portanto, um pouco distante do fim guerra. Contudo, é impossível conceber que articulações tão decisivas tenham surgido de um dia para o outro. Elas trazem as duas décadas anteriores como fundamento, seja do comportamento sócio-político-religioso, seja do cenário político mundial que, em breve, nos levaria às ditaduras. Mas o referido cenário (desfavorável) e as consequências dele não impediram a eclosão de um pensamento teológico libertário. Houve rupturas, perdas e danos, mas os frutos floresceram.
Existe um profeta bíblico chamado Jeremias, que um livro com o nome dele e, um segundo, chamado Lamentações. Identifico-me com ele no arrebatamento emocional, nas muitas lágrimas e no poder de expressar o sofrimento humano. No capítulo três das Lamentações ele escreve: “Deus me fez andar em trevas e não na luz e voltou contra mim a mão, de contínuo, todo o dia, fez envelhecer minha carne e me despedaçou os ossos”. Veja quantas coisas ruins. E tem muito mais. Ele dedica 20 capítulos só para falar de coisas negativas. Então, uma luz o ilumina: “Mas eu quero trazer à memória, o que me pode dar esperança”.
Ou seja, está tudo um caos e o próprio profeta não para de citar eventos que só trazem desânimo e desespero. Mas, de repente, ele conclui que a memória de momentos bons pode lhe trazer esperança. – lembrando que entre a pandemia e o fim da guerra há uma diferença crucial. Em 1945, os países mais afetados começarem do zero porque, destruídos, não tinham infraestrutura. No Brasil desgovernado com mais de 130 mil mortos, de muitas empresas fechadas e de muitos desempregados, a infraestrutura foi preservada. Supõe-se que, uma vez restabelecida alguma ordem, os empregos estejam disponíveis.
A esperança torna-se importante aliada nestes tempos de caos para quem entende que a palavra do profeta bíblico é relevante ou aprecia o olhar de Gilberto Gil quando canta o verso “andar com fé eu vou”. Contudo, este pequeno retrato do mundo pós-guerra demonstra que a esperança é, igualmente, aliada de quem não leva a espiritualidade em conta; afinal a história ensina e prova que, sim, existe o tempo de destruir, mas, felizmente, existe também o tempo de edificar.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema.
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