Você está nervoso?
Por Roberto Cardinalli
"Cartas já não adiantam mais. Quero ouvir a sua voz. Vou telefonar dizendo. Que eu estou quase morrendo". Roberto Carlos
Preciso te contar uma coisa. A morte de Bertholdo Max Quaresma veio pelo interurbano. Ele não tinha mais um minuto a perder. Desligou o telefone, saiu descalço pelo quarto ainda escuro. Pisou nos bobes e grampos da mulher ainda espalhados pelo chão. Foi até o banheiro. Viu um vazio no espelho. Medo. Correu até a cozinha, tomou um gole de café frio, acendeu um cigarro e deu umas goladas de gim na garrafa. Não vou entrar em detalhes, mas acho que vocês já têm uma ideia do que aconteceu. Tudo ocorreu muito rápido e nem seus amigos mais próximos conseguiam acreditar. A sensação era de estar em completo estado de choque.
Bertholdo Max Quaresma era um exímio jogador de xadrez, mas que recentemente havia perdido, com as pedras brancas, suas últimas partidas. Ele tinha uma portinha de filatelia na Galeria Barão Velha, no meio da esquina da Barão de Jaguara, entre a Moraes Sales e a Ferreira Penteado. Antigamente ali era um bequinho improvisado com azulejos bordados. Tinha seu charme no início da década de 80, com cafés, lojas de vinil e Cds, e até um cineclube responsa onde passava filmes e grandes clássicos de Jean-Luc Godard, Wim Wenders, Federico Fellini.
Ele era um sujeito de estatura mediana, que se tornou, anos mais tarde, presidente do Clube dos Cafajestes da Filatelia de Campinas. Todo o dia cinco de março reunia os pilantras de plantão para um porre que ia, invariavelmente, até as quatro da matina no Ponto Chic.
Colecionar selos era a paixão de Bertholdo Max desde a adolescência. Seu primeiro selo foi o da carta que a primeira namorada Constância Propolis, três anos mais nova, lhe mandou, cuja última frase era “sele o nosso destino”, terminando o namoro. O selo com um vermelho intenso mostrava um anjo azul de perfil tocando uma trombeta dourada.
Ele era um sujeito de estatura mediana, que se tornou, anos mais tarde, presidente do Clube dos Cafajestes da Filatelia de Campinas. Todo o dia cinco de março reunia os pilantras de plantão para um porre que ia, invariavelmente, até as quatro da matina no Ponto Chic. Dizem que tinha mais de dez mil selos de centenas de países espalhados em dezenas de classificadores. Um dos seus xodós era o raríssimo selo que estampava em preto e branco o rosto de Anita Garibaldi, na série mulheres famosas do Brasil. Chegou a recusar a bufunfa de mil reais pela peça. Enfim...
Mas foi lá na Barão Velha que conheceu Cândida da Glória; na última sessão de domingo à noite de “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman. Era uma noite estrelada de verão. E Cândida estava encostada no poste da luminária alaranjada que iluminava apenas a entrada da sala de cinema. Vestia um vestidinho florido branco, com desenhos de margaridas e rosas, até os joelhos e uma alpargatas amarela. Parecia estar sem sutiã. Era magra e com cabelos castanhos ondulados e compridos. Lembrava uma bailarina; se encostava com as pontas de um dos pés apontados para baixo.
Bertholdo Max passou bem de devagar na frente dela. Com o rabicho do olho deu para perceber que ela olhava constantemente para o pequeno e quadradinho relógio de pulso. Devia estar esperando alguém. Ele comprou o ingresso e foi tomar um café com conhaque no balcão da cafeteria vazia ao lado com as transparentes portas de vidro. Agora ele podia observá-la de costas, sem ser notado. Estava aflita. Mudou o cigarro de mãos várias vezes. Tragava profundamente e soltava a fumaça olhando para cima. Olhou novamente o relógio e soltou um palavrão que não vem ao caso repetir aqui. Nervosa, foi até a entrada do beco. Mirou várias vezes para os dois lados da rua, procurando alguém e nada. Voltou com passos lentos e se encostou novamente na luminária. Acionou várias vezes o isqueiro Bic roxo e acendeu outro cigarro.
Seu namorado, que se dizia ser amigo ou parente da mulher do Juca Chaves, não se lembrava direito, deu o cano. Não apareceu, e quando apareceu ela pediu que desaparecesse.
A lua estava alta no céu e Bertholdo sentia seu pulso vibrar. Eternas buscas. O café havia acabado e ele resolveu pedir uma dose de rum. A cafeteria da Barão Velha era um dos poucos lugares, naquela época, que vendia os autênticos cubanos. Como um verdadeiro cavaleiro medieval Bertholdo queria ganhar tempo. Finalmente ela o notou. E pareceu que não ficou incomodada. Bom sinal. Estava puta da vida, confidenciou um tempo depois. Seu namorado, que se dizia ser amigo ou parente da mulher do Juca Chaves, não se lembrava direito, deu o cano. Não apareceu, e quando apareceu ela pediu que desaparecesse.
Faltava menos de um minuto para começar a sessão. Ele ainda estava no balcão e já havia pedido mais uma dose de rum. Quando percebeu que ela não estava mais lá. Entrou correndo na sala e a viu se acomodando na poltrona duas fileiras a sua frente. Foram os últimos a deixar a sala. Bertholdo Max descobriu que ela tinha a sua mesma mania: só sair do cinema quando finalizasse todos os créditos do filme. “Sempre tem algo interessante no final”, disse uma vez. Eles se tropeçaram no estreito e escuro corredor que dava para a saída do cineclube. “Ei. Você está nervoso”, perguntou ela. Não estava, mas disse que sim. “Inquietante o filme, não? opinou Bertholdo. “Me lembrarei disto”, respondeu ela.
Agora, ele estava nervoso e lamentava seu estado de finitude, as alucinações, as conversas sem sentido. Ateu convicto, mas sem dor na consciência, desejou naquele momento acreditar no deus. Silêncio. Com o gim escorrendo pela boca, passou por sua cabeça fragmentos daquela noite de verão. Daquela cena do filme. Daquele vazio no espelho. Daquele telefonema de minutos atrás.
- Alô. Quem é você?
- Sou a morte.
- Veio me buscar?
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
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