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Atualizado: 4 de dez. de 2022

Setor. Convivência. Bróduei.

Por Marcelo Andriotti


Memórias de uma geração muito louca, mas que não cantava hino pra pneu


Arrigo Barnabé no Ilustrada. Foto: Adriano Rosa


Bastava o sol baixar, e uma multidão de malucos, transgressores, provocadores e tresloucados delirantes surgia de todas as partes da cidade atraídos por aquele quadrilátero. Era uma mescla de diversão, sexo, drogas, música, poesia, arte, teatro e literatura, com cenas em bares, ruas e calçadas que escandalizavam a sociedade conservadora. Conservadores que, décadas mais tarde, provaram ser muito mais desvairados, cantando hino para pneu, rezando em muros de quartel ou cruzando estradas grudados em limpadores de para-brisas de caminhão.


Naquele final dos anos 70 até metade dos anos 90, o chamado Setor ou Bróduei, o entorno do Centro de Convivência Cultural de Campinas, se tornou o centro de produção cultural e de articulação política e social de Campinas, com reflexos para além dos limites da cidade. Os frequentadores que convergiam para a região buscavam diversão, mas não se contentavam com isso. Queriam produzir cultura, trocar informações e articular políticas em um período marcado pelo final da ditadura e início da redemocratização.


Bar Natural. Foto Adriano Rosa


A principal quadra de bares era formada pela Avenida Júlio de Mesquita, General Osório, São Pedro e Benjamim Constant. Mas havia outros bares e espaços em ruas próximas. Os principais foram o City Bar, Paulistinha, Natural, Bacamarte, Scooby, Metrópole, Luz del Fuego, Contramão, Caicó, Batepapinho, Bar do Meio, Candeeiro, Armorial e Ilustrada, onde se apresentaram grandes músicos da MPB, rock, samba e Vanguarda Paulistana.


Nesse período, a Orquestra Sinfônica de Campinas era conhecida nacionalmente como a Orquestra das Diretas, ensaiava e se apresentava no Convivência e outros pontos de Campinas com artistas populares, astros do rock e da MPB. Unicamp e PUC-Campinas atraíam estudantes, professores e pesquisadores de todo o Brasil e do mundo. Havia festivais de música e teatro nacionais e internacionais, realização de filmes, exposições, produção literária, performances e eventos que fizeram de Campinas um polo de cultura nacional.


Vânia Bastos no Ilustrada. Foto: Adriano Rosa


Pela sua importância histórica e cultural, essa época merecia um registro para que não fosse esquecida. Acima de tudo, foi um exemplo de convivência democrática e de respeito às diferenças. E de como a mistura de variadas culturas e origens, com apoio de políticas públicas e iniciativa privada, podem gerar um fenômeno de produção cultural de alto nível. Mas na metade dos anos 90 a decadência começou, os bares tiveram que limitar música ao vivo e horários de funcionamento, a maior parte deles fechou e casarões foram derrubados. O Convivência foi se deteriorando até fechar. Agora vive uma reforma com expectativa para reabertura em breve.


Bar Caicó. Foto Adriano Rosa


Antes que as histórias se percam


Em 2019, depois de quase 30 anos passando por diferentes redações de jornais e site jornalísticos, voltei à PUC-Campinas para trabalhar como assessor de imprensa e tive a oportunidade de iniciar em 2000 um Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte (Limiar).


Meu mestrado foi desenvolvido durante a pandemia, nos dois anos de isolamento social, e resultou na dissertação "Centro de Convivência Cultura / Setor / Bróduei - Uma Rede Social Pré-Internet", defendida em fevereiro de 2022 sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Pereira da Silva, aprovado pela banca formada pela Profa. Dra. Eliane Righi de Andrade e Profa. Angela Maria Grossi.


Paulinho Nogueira no Ilustrada. Foto Adriano Rosa


Além da dissertação em forma de texto, que estará disponível para acesso aberto no repositório da PUC-Campinas, produzi um documentário feito com celular, sem nenhum recurso técnico e com as limitações de quem fez as gravações sozinho e sem equipamento adequado, mas com o senso da importância de registrar imagens e depoimentos de quem viveu o período mais produtivo culturalmente do Setor, entre 1985 e 1995, antes que essas histórias se perdessem.


O resultado já foi visto por mais de 3 mil pessoas e está disponível no Youtube neste link


Desafios

O grande desafio, além do tempo para defender a dissertação, foi realizar tudo durante a pandemia. Até meu orientador duvidava que conseguiria a tempo. Para gravar, precisava esperar começar a vacinação e ter a segurança que não colocaria em risco minha saúde ou dos entrevistados.


Cida Moreira no Ilustrada. Foto Adriano Rosa


Na época de estudante de Jornalismo fui garçom do Ilustrada, talvez o mais importante espaço cultural do Setor. Depois de formado, comecei a trabalhar como repórter de cultura no caderno Viver, do Diário do Povo. Por isso, vivi intensamente e pessoalmente o período e local do meu objeto de pesquisa, o que facilitou o trabalho.


Busquei entrevistados que tivessem participado ativamente daquele momento cultural e que estivessem por Campinas ou cidades próximas. De início pensei em alguns nomes como o do maestro Benito Juarez e do Seu João, dono do City Bar nos anos 80. Ambos faleceram no início da pesquisa.


Mário Lucio no Ilustrada. Foto Adriano Rosa


Outros nomes também não deram certo, por divergências de agenda ou outros motivos, como a cantora Tatiana Rocha, o músico Doc Miranda, os artistas plásticos Ricardo Cruzeiro e Rosa Morena. Havia outros nomes, mas não consegui os contatos ou não teria tempo para ouvir todos.


Foram sete as pessoas que pude ouvir. Além disso, reuni uma série de fotografias da época, de shows e das ruas, cedidas pelos fotógrafos Adriano Rosa e Carlos Bassan, e imagens de reportagens da EPTV (na época TV Campinas). O arquiteto e artista plástico Paulo de Tarso teve uma grande participação no trabalho recriando o Setor em uma maquete virtual que usei no final do documentário, tendo como trilha sonora a música "Teu Olhar", do Grupo Soma, cedida pelo músico e compositor Marcelo Calderazzo.


Raul, Celso (irmão de Paulinho Nogueira) e Ding Dong no Ilustrada. Foto Adriano Rosa


A primeira entrevista foi com o jornalista Marcelo do Canto, meu amigo desde os anos 80, ex-colega do Ilustrada, do Diário do Povo e padrinho de casamento. Ele ficou conhecido na época como o cantor pop-brega Mário Lucio, personagem nascido no Ilustrada e que ganhou palcos nas principais festas universitárias e shows por São Paulo e Sul de Minas.


A escolha para primeira entrevista, além da proximidade pessoal e física, pois moramos próximos, foi providencial. A gravação precisou ser refeita três vezes, as duas primeiras foram danificadas por um defeito no cartão de memória do celular. Fosse outro entrevistado, talvez não tivesse a paciência de refazer a conversa.


Bar Paulistinha. Foto Adriano Rosa


Depois as conversas foram com a jornalista e atriz Delma Medeiros (em uma bar de Barão Geraldo), com o cronista e músico Zeza Amaral (em seu apartamento, com a participação do canto inspirado de um canarinho), com o músico Chiquinho do Pandeiro (em sua fábrica de equipamentos farmacêuticos), com o ex-secretário de Cultura Célio Turino (no jardim de entrada do Sesc Vila Mariana, que estava fechada devido à pandemia), com o produtor cultural Toy Lima (em sua casa em Campinas, em uma noite chuvosa e com pouca iluminação) e com o "mestre de cerimônias rítmico" Ding Dong (no Spaguetti, antigo Scooby, talvez o único espaço que ainda mantenha um pouco do espírito do Setor dos anos 80 e 90).


As entrevistas foram cheias de memórias alegres e de saudade, com algumas revelações surpreendentes, e com fatos e teorias que buscam explicar como o Setor teria se formado e se transformado em um polo cultural, atraindo artistas nacionais e estrangeiros. João Gilberto apaixonado pelo Convivência e fã de Benito Juarez, desentendimento de artistas com produtores e seguranças, o embate entre músicos e vizinhança, articulações de greves nas mesas do Paulistinha e como surgiram os nomes Setor e Bróduei são algumas histórias que estão no documentário.


Bar Scooby. Foto Carlos Bassan


Histórias a serem contadas


Muitas outras ficaram de fora na edição, para que o documentário fosse finalizado com um tempo de 46 minutos (contando com o clipe da maquete virtual no final). Mas guardei essas gravações na íntegra para usar futuramente.


Quando comecei meu trabalho de pesquisa, vi que havia muito pouca coisa registrada da época. Algumas reportagens de jornais e páginas em redes sociais dedicadas ao "garimpo" de imagens históricos de Campinas. Havia apenas um estudo acadêmico sobre o Convivência, "Centro de Convivência de Campinas: um olhar sobre a arquitetura de Fábio Penteado", realizado por Ricardo Trevisan, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo da Universidade de Brasília.


City Bar. Foto Carlos Bassan


Espero gravar futuramente outros depoimentos de muita gente importante que ficou de fora desse primeiro trabalho. Talvez com mais recursos para realizar um trabalho tecnicamente bem elaborado. A história dos artistas de Campinas merece ser contada e registrada antes que se perca, assim como a de acadêmicos, cientistas, políticos, empresários, esportistas e profissionais de diversas áreas que fizeram a história da cidade.



Marcelo Andriotti é jornalista, mestre em Linguagens, Mídia e Arte pela PUC-Campinas e ex-garçom do Ilustrada.

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