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Atualizado: 23 de jun. de 2022

Em homenagem ao letrista Aldir Blanc, morto no dia 4 de maio passado, a revista URRO! resgata essa entrevista concedida em 2007 por ele à ABI (Associação Brasileira de Imprensa).

Boa leitura!

José Reinaldo Marques 14/11/2007

Aos 61 anos — festejados em 2 de setembro —, Aldir Blanc se orgulha da parceria com João Bosco, com quem forma a dupla de compositores vivos mais gravados por Elis Regina. Em seu apartamento na Muda, Zona Norte do Rio, onde vive quase recluso com a mulher Mari, os netos gêmeos Pedro e Joana e cerca de 15 mil livros, o poeta e cronista carioca conta ao ABI Online por que trocou a medicina pela música e comenta. Em dezembro de 2006, nova troca: foi do jornal para a TV e, ao lado de Ferreira Gullar, Jorge Mautner, José Celso Martinez e Augusto Boal, faz o programa “Retalhão”, que vai ao ar aos domingos, às 20h30, no Canal Brasil.


Acompanhado do fiel companheiro Batuque (labrador que adotou há cinco anos), ele fala ainda de direito autoral, da paixão pela literatura e o Vasco da Gama, da traição que diz ter sofrido de Renato Russo, dos truques e artimanhas que usou para se livrar da censura e da amizade com Henfil e Chico Mário, irmãos de Betinho, e diz que não esperava que “O bêbado e a equilibrista” acabasse se tornando no hino da Anistia.


ABI OnlineAntes de ingressar na música, você chegou a exercer a psiquiatria. O que o levou a estudar Medicina?

Aldir Blanc — Foi um comentário do meu pai. Ele me acompanhou a uma cerimônia no Colégio São José, onde eu estudava e havia tirado nota dez em todas as provas de Biologia, conquistando uma medalha de ouro. Ele jamais tinha dado um palpite sobre os meus estudos e me surpreendeu com o seguinte comentário: “Pelas suas notas em Biologia, acho que você deve estudar Medicina.”


ABI OnlineComo foram os primeiros anos na faculdade?

Aldir — Logo no início, não sentia firmeza. Passava em todas as matérias, menos Anatomia. No segundo ano, a mesma coisa. No terceiro, melhorei, porque fui fazer Clínica no Hospital Gaffrée e Guinle, na Reumatologia, e me tornei um acadêmico bom e dedicado ao que fazia.


ABI OnlineVocê estava convicto de ter feito a opção profissional certa?

Aldir — Nem então eu tive essa certeza. Quanto à paixão pela Reumatologia, acabou depois do 4º ano. Cheguei ao 5º e precisava ir a algum lugar, mas não tinha a menor ideia do que queria ser.


ABI OnlineComo conseguiu terminar o curso?

Aldir — Incentivado por um amigo da faculdade. Quando falei que ia largar tudo, ele me disse: “Vai deixar o curso quase no fim? Não faça isso. Como seu temperamento é meio doido, vou levá-lo para um lugar onde acho que você vai fazer um bom trabalho.” E me indicou o Hospital Gustavo Hidel, no Engenho de Dentro, para trabalhar na Enfermaria Pedro Pernambuco Filho, onde ficavam 120 pacientes indigentes e seminus, para 40 leitos e sem remédio.


ABI OnlineAté quando durou o interesse pela psiquiatria?

Aldir — Até eu começar a tocar percussão com o João Bosco e a fazer letras de músicas que me tomavam um tempo do estudo que eu achava essencial. Precisava sair à noite para tocar, às vezes até viajar. Foi um movimento que eu sabia que era definitivo, sem volta, embora me mantenha rigorosamente atualizado com os livros de psicoterapia e psicanálise. São leituras que fazem parte do meu círculo normal de leitura, com muito prazer.


ABI OnlineQuais são suas outras leituras prediletas? Aldir — Sempre li muito e tenho em casa cerca de 15 mil volumes. Comecei pelas leituras óbvias da juventude, como Monteiro Lobato e tudo que era aventura e capa e espada, além das coleções de Charlie Chan, Sherlock Holmes e Arsène Lupin. Mas dois títulos marcaram a minha adolescência: “A casa demolida”, do Sérgio Porto, e “Tijolo de segurança”, do Carlos Heitor Cony; atuaram em mim como se fosse um abalo sísmico, porque não eram os meus piratas ou detetives. Depois, comecei a comprar loucamente os autores brasileiros e outros estrangeiros consagrados.


ABI OnlineQue autores brasileiros?

Aldir — Primeiro, Esdras do Nascimento, Adonias Filho e José Condé. Mais tarde, Jorge Amado, Guimarães Rosa e alguns poetas que lia menos. Eu me lembro que quando li pela primeira vez “Dentaduras duplas”, do Carlos Drummond de Andrade, tomei um choque e levei uns dois anos para compreender que era um poema magnífico.


ABI OnlineVocê é cria do Estácio e de Vila Isabel, bairros com tradição de samba e boemia. Isso influenciou sua formação artística?

Aldir — Meus livros “Rua dos Artistas e arredores” e “Porta de tinturaria” falam rigorosamente sobre a experiência dos anos vividos em Vila Isabel, dos almoços de domingo, com comida farta, muitas caixas de cerveja… Foi nessa época que acabei criando um temperamento sardônico.


ABI OnlineOs personagens dos livros foram tirados dessas reuniões dominicais?

Aldir — Principalmente o Russo, que aparece nos dois. Ele é um cara suburbano do tipo madeira pra toda obra, tocava tão bem um martelo e um prego quanto consertava um telhado. Esse mesmo Russo, no segundo livro, encarna o personagem Esmeraldo Simpatia É Quase Amor, o homem de bigodinho fino que dá em cima de todas as mulheres.


ABI Online O jornalista Maurício Azêdo, Presidente da ABI, acha que a sua crônica tem um estilo que lembra Sérgio Porto.

Aldir — É uma comparação que me honra, porque eu me lembro do prazer de ler a coluna que ele assinava como Stanislaw Ponte Preta, na Última Hora, e de ver “As certinhas do Lalau”, que nos levavam a grandes sonhos eróticos (risos). O Sérgio Porto usava a linguagem do cronista tarimbado em jornalismo; eu me aproximo dos personagens dos quadrinhos, que têm hora para entrar e sair da história, sempre com um fecho do mesmo alter ego.


ABI OnlineSua estreia no Festival Internacional da Canção, em 1968, foi o casamento definitivo com a música?

Aldir — Acho que foi no ano seguinte, quando letrei “Nada sei de eterno”, uma música muito romântica do Sílvio da Silva Júnior que todo mundo achava que ia ficar de fora. De repente, o Taiguara, que havia estourado com “Helena, Helena”, apareceu chorando e disse a mim e ao Silvinho que aquela era a música que ele ia cantar no festival. A canção tirou segundo lugar, ovacionada pela plateia.


ABI OnlineVocê fez outro sucesso com o Sílvio, “Amigo é pra essas coisas”.

Aldir — Essa música tem uma história inusitada. É um diálogo, que o Ruy e o Magro do MPB-4 transformaram em uma conversa entre quatro pessoas. Acredite quem quiser: não deu certo nem no ensaio geral. No entanto, quando eles entraram no palco, certos de que seria um tremendo fracasso, pela primeira vez funcionou, cativou o público. E está viva até hoje.


ABI OnlineQual foi o seu envolvimento com o Movimento Artístico Universitário (MAU)?

Aldir — O MAU se apropriou do campo artístico universitário e o traiu, porque ali nem dez universitários havia. Nenhum plano para expandir o movimento para o circuito das universidades foi levado a sério. Então apareceu a proposta da Globo para fazer o programa “Som livre exportação”, que só tinha interesse nas figuras de proa e em compositores que interpretassem as próprias canções, como Ivan Lins, Gonzaguinha e César Costa Filho. Os outros não tiveram a menor chance.


ABI OnlineO crítico Roberto M. Moura dizia que você é uma mistura da tradição musical de Catulo, Orestes Barbosa e Caymmi com autores modernos como Renato Russo. Você concorda?

Aldir — O Roberto erra ao me trazer até o Renato Russo, com quem eu não tive identificação alguma e que me traiu um pouco antes de morrer. Pediu para usar um trecho de “O bêbado e a equilibrista”, dizendo que seria uma honra se eu permitisse o uso da letra. Aceitei e ele se referiu à composição numa gravação do “Fantástico”, dizendo que não gostaria de fazer músicas idiotas como essa.


ABI OnlineQue gêneros musicais são marcantes na sua formação de compositor?

Aldir — Quem me formou foi a seresta. Eu ouvia Sílvio Caldas, Onésimo Gomes, Orlando Silva, e ficava profundamente encantado com a riqueza das letras, com a capacidade de se criar imagens fascinantes com elas, como fizeram Lamartine Babo e Ary Barroso. Depois vieram Cartola e Nelson Cavaquinho, com versos que me marcaram profundamente.


ABI OnlineComo nasceu a parceria com João Bosco?

Aldir — Ele estava na plateia de um desses festivais de que participei, sentado ao lado de uma pessoa que ele não sabia que era minha amiga, e disse: “Eu tenho dezenas de músicas que gostaria que fossem letradas por esse cara.” Nós nos encontramos e a coisa teve o efeito de uma cachoeira. Dessa primeira fase, gravamos “Bala com bala” e “Agnus sei”.


ABI OnlineSão quantas composições no total?

Aldir — Fizemos uma conta recentemente e contabilizamos, por alto, mais de 120 músicas. Se formos contar as inéditas e aquelas cujas letras ficaram pela metade, sobe para umas 150.


ABI OnlineDepois de Tom Jobim, você e João Bosco são os autores mais gravados por Elis Regina.

Aldir — Como diz um amigo meu, perder para o Tom Jobim não é perder. Ele tem 30 músicas gravadas por ela e eu e o João temos 28, ou seja, somos os compositores vivos mais gravados pela Elis.


ABI OnlineQuais são seus outros parceiros mais frequentes?

Aldir — O Guinga, com quem já fiz entre 80 e cem composições, e o Moacyr Luz, um parceiro e tanto também. Depois vêm Jaime Vignoli, Sueli Costa, Edu Lobo, Lourenço Baeta (Boca Livre), Djavan e Ivan Lins. Sou autor de 500 composições, 450 das quais estão registradas em discos.


ABI OnlineVocê esperava ver “O bêbado e a equilibrista” virar o hino da Anistia?

Aldir — O que é bacana nessa música é que ela não nasceu ligada ao tema. Quando o Chaplin morreu, o João me chamou na casa dele e disse que havia feito um samba, cuja harmonia tinha passagens melódicas parecidas com “Smile” (do filme “Tempos modernos”), propositalmente construídas para que homenageássemos o cineasta. Só que, casualmente, encontrei o Henfil e o Chico Mário, que só falavam do mano que estava no exílio.


ABI OnlineSurgiu aí a ideia de incluir o Betinho na letra?

Aldir — O papo com o Chico e o Henfil me deu um estalo. Cheguei em casa, liguei para o João e sugeri que criássemos um personagem chapliniano, que, no fundo, deplorasse a condição dos exilados. Não era a ideia original, mas ele não criou caso e disse: “Manda bala, o problema é seu.” A música foi cantada pela primeira vez, pela Elis, num programa em São Paulo. No dia seguinte, estava estourando em todo o Brasil e ainda nem tinha sido gravada.


ABI OnlineComo foi seu primeiro contato com o Betinho?

Aldir — Ele retornou ao Brasil, depois da Lei da Anistia, e foi assistir a um show no Canecão (Rio). A gente se cruzou numa ida ao banheiro. Ele olhou para mim e falou, sorrindo: “É você, não é? Eu pretendia terminar os meus dias lá fora e voltei por causa dessa música, seu f.d.p.” E assim essa amizade se solidificou, a ponto de nos transformarmos, Betinho, Henfil, Chico Mário e eu, quatro irmãos.


ABI OnlineVocê teve muitas canções censuradas?

Aldir — O tempo todo. A que deu mais problemas foi “O mestre-sala dos mares”. No prédio onde funcionava a Censura, um sujeito chegou perto de mim e disse: “Vocês estão errando. Estão trocando os versos, mas a palavra ‘negro’ permanece. Vocês estão fazendo apologia do negro e a nossa orientação aqui é para não aceitar esse tipo de coisa. Já te dei o toque, agora vê o que você arruma.”


ABI OnlineQual foi a sua saída?

Aldir — Com base numa estratégia que havia aprendido na RCA, introduzi na letra elementos surrealistas, como baleias e polacas, entre outros, e troquei o navegante negro, ou almirante negro, por mestre-sala dos mares. Aí a música passou, mesmo falando em sangue, chibata, glória a todas as lutas inglórias e tudo mais (risos).


ABI OnlineA maioria dos compositores reclama de arrecadação de direito autoral. Você também tem queixas?

Aldir — Houve um tempo em que fui intensamente roubado. Juntamente com outros compositores, pedi prestação de contas à Sicam (Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais), que imediatamente cancelou nossa filiação, nos expulsou da entidade e ficou com nosso dinheiro, conforme ficou comprovado pelo laudo de um juiz. Eu não vivo de direito autoral. Sobrevivo de bicos, letras, textos para jornal, livros, releases, o que pintar, ou não consigo completar o mais bobo dos orçamentos domésticos mensais.


ABI OnlineComo se deu a sua integração com a turma do Pasquim?

Aldir — Um dia o Ziraldo me telefonou, pedindo um artigo especial para a edição de Natal. Eles gostaram da crônica e me pediram mais duas. Passou um tempo e o Ivan Lessa, uma das pessoas mais rigorosas que conheci, me telefonou e disse: “Parabéns, de hoje em diante você é membro da patota do Pasquim.”


ABI OnlineHouve um momento em que você escreveu muito para jornais.

Aldir — Em relação a esse dado, acontece uma coisa muito curiosa. Toda vez que eu encontro um jornalista ortodoxo, escuto que não tenho nada a ver com jornalismo. De fato, pode ser que eu não tenha nada a ver. Mas durante 40 anos escrevi em todos os jornais do Rio. E ainda fui colunista do Estadão, a convite do Aluízio Maranhão (atualmente editor de Opinião do Globo).


ABI OnlineCom quais publicações você colaborou mais assiduamente?

Aldir — A Hora do Povo e a Última Hora, que tinha o “Suplemento feminino”, para o qual eu adorava escrever. Fui também articulista e cronista esportivo da Tribuna da Imprensa. Na primeira passagem pelo JB, escrevi rodapés sobre discos e fiz uma série dificílima com o Lan: ao invés de ele ilustrar meus textos, eu é que criava uma história em cima do desenho dele. Depois passei um tempo no Dia, até o casal Garotinho pedir a minha cabeça. O então Diretor de Redação alegou que me cortaram porque eu escrevia muito palavrão, mas isso não é verdade. Em seguida, voltei ao JB, de onde fui dispensado, estupidamente, por uma moça educadíssima de quem não direi o nome, para não mandarem ela embora também. Pra variar, o editor não me demitiu pessoalmente, o que sempre acontece. É uma espécie de preconceito, como se dissessem: “Ele merece menos consideração porque vem da música popular.”


ABI Online — Foi bom mudar para a TV, há quase um ano, e fazer o “Retalhão”?

Aldir — Nunca pensei que fosse gostar tanto desse trabalho, porque tenho dificuldade com televisão, luz, câmera etc. Atribuo a alegria com que o faço à equipe do programa, que soube me deixar à vontade, e também ao fato, importantíssimo pra mim, de que os temas são absolutamente livres, à minha escolha. Com dezenas de programas feitos, jamais sofri qualquer tipo de pressão ou corte. Se eu, com minhas limitações diante de palco, mídia e tal, sonhasse com um lugar para fazer uma TV ideal, não seria tão bacana quanto o Canal Brasil.


ABI Online Voltando à MPB, seus dois discos solo, “Aldir 50 anos” e “Vida noturna”, apesar de muito elogiados pela crítica, não tocam nas rádios.

Aldir — Não são apenas os meus discos que não tocam no rádio, a não ser em programas idealistas como o do Osmar Frazão, na Rádio Nacional. O problema foi e continua sendo o jabá. Para dar uma ideia, no começo da carreira eu e o João Bosco fizemos duas suítes de mais de 12 minutos cada, em parceria com o falecido cineasta Cláudio Tolomei, que ninguém conhece.


ABI OnlineO Centro de Referência da Música Carioca, inaugurado pela Prefeitura na rua em que você mora, é uma iniciativa que vai dar samba?

Aldir — Espero mais interação entre o que a casa representa e o bairro da Muda, porque eu fui até lá para um show do Guinga e só havia dois negros na plateia. Também não vejo as crianças das comunidades carentes da Grande Tijuca brincando ali. Enquanto isso não acontecer, o lugar não será a casa de cultura dos meus sonhos.

ABI OnlineAs crianças estão mais presentes na sua vida. A letra de “Acalanto pros netos” é a confissão de um avô coruja?

Aldir — Em outubro de 91, sofri um acidente de carro. Fraturei o fêmur de maneira incomum, fui submetido a uma séria cirurgia e, não por culpa dos excelentes médicos, fiquei com a perna dura. Após oito meses de cama, isso me arrasou e eu comecei lentamente a desistir. Não só de melhorar, mas talvez de viver. No ano seguinte, fui surpreendido com a chegada de três dos quatro netos, e a minha vida mudou inteiramente. Sei que a metáfora é batida, mas foi como se flores brotassem no deserto.


ABI OnlineE sua outra paixão, o Vasco da Gama?

Aldir — Tenho uma relação afetiva com o clube, mas não me identifico com o Vasco do Eurico, com suas cavalices e a perseguição estúpida ao Flamengo, que só nos deu vexame. Perdemos três títulos depois que ele escolheu esse caminho como meta eleitoral. Por isso eu o chamo de “Maquiavel ao Zé do Pipo”. Vou contar tudo isso no livro “Código da Gama” que quero terminar até dezembro, fazendo algum tipo de previsão entre o que está aí agora e o clube que nós vascaínos queremos.

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