Mangueira e Londres na rota, Hélio propõe uma arte afetiva
Por Norma Pereira Rego
Cabelos mais longos do que os de John Lennon ou Caetano Veloso, os mesmo vincos cavados na face magra por uma intensa vida interior, chegou de Londres faz uma semana, Hélio Oiticica.
Chegou na hora. Aqui nesta página os leitores tem encontrado em forma de debate ou depoimento o início de um balanço da arte brasileira nos últimos vinte anos. Depois de ouvir gente da poesia e do cinema estávamos querendo mesmo um elemento das artes plásticas. Hélio, que tem uma posição chave na história da arte de vanguarda dos anos 1960 estourou aqui na hora de dar esse depoimento.
Ele tem muito o que responde, por exemplo, ao que disse aqui Ferreira Gullar. Hélio foi seu companheiro de trabalho no movimento neoconcreto, os dois pensavam e discutiam juntos cada passo, cada nova exposição. Gullar acaba de lançar um livro onde coloca o problema da arte de vanguarda no Brasil. Nesse livro, ele praticamente repudia o trabalho que realizou nos últimos anos 1950. Hélio, pelo contrário, continuou as pesquisas sozinho. Em 1960, quando o neoconcretismo se dissolveu. Hélio era quase um menino (hoje tem 30 aproximadamente) e mesmo assim seguiu, solitária e corajosamente suas pesquisas de modo que, em 1965, quando os artistas plásticos brasileiros voltaram a se organizar em torno de um movimento inspirado na linguagem pop e na indústria, Hélio já tinha uma obra sua. Quando vergara ou Roberto Magalhães falaram em sair da parede para o espaço, Hélio já tinha saído há muito tempo (já fizera as capas chamadas parangolés que só existiam a partir de seu uso) e estava sendo descoberto por Guy Brett do Time, e por Paul Keller, dono de uma galeria de vanguarda em Londres. No ano seguinte Hélio já era um capítulo especial no livro Kinectic art organizado por Guy Brett e dois anos depois, isto é, em 1968, partia para Londres a fim de realizar uma exposição na Witechapel, uma das maiores galerias de arte da Inglaterra, a mesma que lançou Mondrian e Pollock na Europa.
Hélio é uma figura maravilhosa, sua vida nada tem de comum e sobre essa vida tanto quanto sobre suas obras é que eu quero falar. Aliás, quem vai falar é ele, o filho de um ilustre professor e cientista chamado José Oiticica Filho, que morava bem no alto do Jardim Botânico numa casa espaçosa e moderna, mas passava a maior parte do seu tempo em Mangueira, onde ninguém sabia do seu lado artista.
Hélio desfilou três anos como um dos principais passistas em mangueira e isso para ele nada tem de folclórico. Foi amigo de gente simples e de perigosos marginais, ia á casa deles, e levava-os à sua casa. O samba inspirou sua arte e sua vida. Sua exposição em Londres durou de fevereiro a abril, bateu recordes de visitação e teve um número de reportagens pouco comum naquela cidade. Em julho do ano passado foi convidado a participar de um simposium que se realizou em Los Angeles sobre Touch art. Ele e Lygia Clark mostraram seus trabalhosa psicólogos, educadores e artistas interessados nessa nova jogada que é a arte do tato. Atenção pra ela que é uma boa pedida.
Receberam a Hélio como um irmão que voltou de uma longa viagem. Ele traz notícias de Caetano e Gil, traz uma grande sede de samba, de música de Roberto Carlos ouvida no rádio, da luz e da sensualidade do verão carioca. Vem pedindo só um pouco mais de sensatez, mas isso com muito amor.
Hélio, você é um dos poucos casos que temos de artista cuja formação é toda de vanguarda. Você estudou com Ivan Serpa em 1954, quando ele já estava no grupo Frente, não é isso? Só você pode responder a uma afirmação que o Ferreira Gullar fez a mim: antigamente ser artista de vanguarda dava miséria e anonimato, hoje isto dá glória e dinheiro.
Estou procurando o Gullar desde o primeiro dia em que cheguei. Falam muito no novo livro dele mas eu preciso ler antes de comentar. O que eu conheço é a Teoria do não-objeto que ele fez há mais de dez anos. Aquela era incrível, já continua inclusive o conceito de obra aberta. Parece que hoje o próprio Gullar chama essa teoria de formalista e eu preciso dizer a ele que não é não. E se ele está pensando que estou interessado em esteticismo e formalismo está muito enganado, quero justamente o contrário. Os artistas de hoje sabem que aquele tipo de vanguarda que consistia apenas em um progresso formal linear não dá mais pé. Quanto à história do anonimato... deixa eu ver: qual é a vantagem? Se quero me comunicar não posso querer ser anônimo! Glória não consegui, só respeito. Dinheiro também não, nunca vendi nada porque nunca fiz nada que pudesse ser vendido.
É verdade, Hélio, seu caso é muito especial, você entrou há dez anos numa jogada que só agora alguns artistas por aí a fora estão entrando, que é confundir numa coisa só a arte e a vida.
Isso é fácil de falar mas difícil de acontecer. Da primeira vez que tive essa aspiração procurei uma forma ritualística: o samba. Mas o samba só não transforma de repente a vida ou a arte de ninguém. Um dia lá eu consegui o que queria, o samba deixou de ser pra mim uma representação. Em mangueira, na vida do morro eu descobri o meu caminho. Hoje arte pra mim é comunicação pura, e toda atividade que eu tiver será uma tentativa de comunicação.
O que mudou mais a sua vida, Londres ou Mangueira?
Eu me integro muito no ambiente em que vivo, assim, primeiro a gente do morro depois os hippies de Londres me ensinaram muita coisa.
Quando e porque você foi à Mangueira?
Você sabe, não é? Eu nunca sofri de ipanemia. Sempre achei o bairro muito família pra mim. Desde 1963 procurei o morro e lá encontrei gente inteligente e livre da parafernália intelectual de Ipanema. Já em 1965 eu era um dos principais passistas da Mangueira e desfilava com roupa dada pela escola.
Qual foi o seu maior carnaval? O que você sentiu na avenida?
O maior foi o carnaval do IV centenário. Fantástico, foi uma glória. Difícil sintetizar assim em poucas palavras tudo aquilo. Lembro que quando a bateria da Mangueira começava a tocar era como se fosse dada a ordem pra começar a viver. Mas você precisa saber que a vida de morro não consiste apenas em carnaval. Eu detesto folclore. Havia as noites nos botecos, os pequenos shows de subúrbio onde eu dançava para fazer finanças para a escola e todo mundo me tratava com tanta gentileza, eu me sentindo um representante de Mangueira.
Você voltou lá depois que chegou?
Fui sábado. Vi pessoa fugirem com horror do meu cabelo, outras fingindo que não viam. Mas para algumas a minha chegada foi uma euforia. Ruim foi quando eu perguntei por Gerônimo e me responderam assim: sete palmos debaixo da terra.
Gerônimo é aquele crioulo alto de cara redonda que aparece rindo com uma de suas capas Parangolé no catálogo de sua exposição em Londres?
É aquele mesmo, um dos maiores passistas de Mangueira. Com ele uma parte da escola morreu pra mim.
Que outras surpresas você teve depois que chegou?
Achei as pessoas muito loucas. Tudo muito ruim com elas e elas festejando sem parar. Não sei porque tanto festejo. Estou no maior pavor porque tenho que trabalhar e me organizar. Loucura pra cima de mim não! Sou malandro velho de mangueira.
E em Londres, correu tudo bem?
Bem demais. Logo que cheguei fui visitar o grupo Exploding galaxy que fazia lindas experiências de arte nas ruas. Trouxe fotos que posso te mostrar. Montar minha exposição também foi uma experiência galáxica. Vinte artistas trabalharam comigo. Foi preciso colocar lá 27 toneladas de areia, uma célula cheia d’água, armar os ninhos-lazer onde as pessoas ficavam sentadas pensando ou simplesmente convivendo. Foi uma experiência bacana ver homens de negócio entrarem no recinto e obedecer a sugestão de tirar os sapatos para poder sentir as sensações táteis que o meu trabalho queria transmitir. Aqui no Museu ninguém tira o sapato, acho que o brasileiro custa tanto a ter um sapato que o ato de tirá-lo é assim como o de abandonar um status.
Aqui no Rio você vai montar uma exposição desse tipo?
Talvez, mas não em galerias nem em museus, esse tipo de local restringe o público. Estou interessado em vários outros trabalhos, por exemplo um filme que tenho na cabeça e que não pode ser exibido em cinemas comuns onde a poltrona deixa o espectador passivo, quero exibi-lo numa sala especial onde as pessoas fiquem deitadas em colchões ou de pé como acharem melhor. Lygia Pape e Caetano Veloso vão trabalhar comigo nesse filme. Caetano quer escrever algo sobre um conjunto habitacional em Deodoro onde ele morou que é o lugar mais Tristes Trópicos que existe.
E como vão eles, Gil e Caetano?
Estão desabrochando, lá eles tem todo o incentivo para criar, os maiores artitas de Londres vão à casa deles. Mike Chapman está compondo junto com ele. Gil já não está com aquelas ideias que tinha quando chegou, por influência de Rogério Duarte cismava que devia voltar para levar vida de místico no interior da Bahia.
E suas ideias quais são?
Fazer uma arte que leve as pessoas a uma relação afetiva com o mundo.
Publicada originalmente na Última Hora, em 31 de janeiro de 1970 .
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