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Calhau

Atualizado: 22 de jun. de 2022

Seu cachorro!

Por Roberto Cardinalli


“As coisas que errei na vida. São as que acharei na morte. Porque a vida é dividida. Entre quem sou e a sorte.” Fernando Pessoa.


Uma aposta certeira do começo do século 20 no Rio de Janeiro


“Aonde você vai?” Vou embora. “Senta aí e fica quieto”. Não aguento mais esse cheiro de naftalina. E essa cortina de cordinha desfiada balançando o tempo todo está me irritando. “Calma, logo vai chegar a nossa vez”. Como deixei você me trazer nessa espelunca. Quem te deu mesmo aquele papelzinho com a propaganda da Mãe Lola. Tudo bem que nossa vida não vai lá essas coisas, sem nenhum tostão furado no bolso e desempregado. “Calma, deixa disso homi de deus. Já que viemos até aqui, não custa nada esperar mais um pouco”. Eu bem que tentava, mas não conseguia esconder a minha malquerencia com aquele lugar.


Comecei a sentir o nariz coçar. Mau presságio. Meus poucos amigos sabem que desde a adolescência sofro com as constantes e intermináveis crises de rinite, em consequência do pó que se acumulava costumeiramente lá em casa. Nem consegui concluir o raciocínio, e logo em seguida veio uma onda homérica de espirros, um atrás do outro. Tive de levantar do sofá de veludo esgarçado vermelho jogado na pequena sala de espera para ir ao banheiro.


O cheiro de naftalina estava me deixando nauseado. Abri a porta verde clara do banheiro e pisei com força em uma imensa poça da água formada por uma insistente goteira vinda do teto manchado pela infiltração na laje. O balde laranja escuro embaixo da goteira já havia transbordado e a água que corria em direção a sala subiu pela barra da calça. Puta que pariu; mais essa agora. Tem horas na vida que dizer não é a melhor coisa a fazer, mesmo que possa ferir sentimentos e suscetibilidades. Só parei de praguejar contra mim mesmo, quando vi um pequeno pinico azul sujo jogado no canto de cabeça para baixo. Ri. Por deus. Ninguém merece.


Vendo as últimas gotas do mijo amareladas caindo fora da privada e se misturando com a poça, não conseguia me lembrar direito de tudo que havia ocorrido hoje. Sei que aconteceram tantas coisas desde que sai de casa cedo para fazer uma fezinha no jogo do bicho. Quando acordei de manhã, ainda na cama, contei tim tim por tim tim para a Berta que tinha sonhado com o número cinco. Foi um dos sonhos mais claros dos últimos tempos. Sonhei que estava participando daquele programa Roda o Pião da Casa Própria do Silvio Santos. Sei que você já ouviu pelo menos uma vez na vida aquela grudenta musiquinha assobiada de fundo. Lembra: tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã tã... Fuim Fuim... E por aí vai.


“Roda o pião, Horácio. Com força Horácio! Este é o Horácio, ele mora em Campinas, São Paulo, e tem o sonho de sair do aluguel e conseguir comprar a casa própria. Vai girando... Tem força ainda. Ele estava com os carnês do baú pagos rigorosamente em dia e veio girar o pião. Se parar no um ele perde. Se parar no dois ele perde. Se parar no três ele perde. Se parar no quatro ele perde. Se parar no cinco ele ganha. Se parar no seis ele perde. Tá perdendo força. Vai parar no três. Olha o quatro. Vem o cinco. Vai passar. Vai passar. Voltou. Ganhooouu. Oeeeeeeeeee; ganhou uma casa no valor de trinta mil reais. Ha haaee, hihi!”


Na cozinha, a chaleira já apitava com água fervida para o café, enquanto Berta preparava o pão com manteiga. Resolvi apostar tudo no bicho. Sentia a sorte pulsar na dormência dos dedos da mão esquerda. Tinha certeza que ia cravar no milhar. Voltei para o quarto para me aprontar. A cama ainda estava desarrumada com o cobertor de flanela marrom enrolado do lado esquerdo, e a colcha quadriculada caída no chão. Não quis perder tempo em colocar o cobertor de volta na cama. Aquela musiquinha do pião girando me perturbava, gritando nos meus tímpanos e provocando transtornos abissais no cerebrino.


O dia tinha amanhecido estranho. Depois de vários dias de sol e calor, o céu estava cinza com nuvens escuras carregadas. Uma brisa provocada por rajadas de vento com premissas de temporal. Vesti uma camiseta de meia por baixo e o suéter que tinha comprado, nos tempos que as vacas não eram tão magras assim, em cinco prestações havia dois anos na Casa Apollo Roupas Masculinas. O jeans já estava no candelabro. Há mais de um mês saia de casa com ele e já deixava-o no mancebo para o dia seguinte. Só a Berta percebia. E me enxia o saco. “Não vai por para lavar essa imundice, não?” Não tinha tempo para bobagens domésticas. Antes de sair de casa, porém, li um poema de Fernando Pessoa para a Berta.


Sabia que o De Paula, um antigo frequentador contumaz do Morte Dura, costumava recolher as apostas bichadas. Corria na boca pequena que ele era o gerentão do negócio e trabalhava religiosamente todos os dias para Orlando Xinin, o dono da banca nesses cantos da cidade. O bar estava aberto; tinha até um murundum acima do normal para aquele horário. O De Paula estava lá. O Zanqueto também junto com outros gatos pingados. Mas, foi o Jordão que me contou. Seo Alvarinho, o dono do boteco, tinha falecido na noite anterior. Que merda, justo hoje; não podia ser amanhã, não! Poderia ter alguém que controlasse a data e a hora dessas coisas para podermos ter a oportunidade de negociar de vez em quando.


A mulher dele já tinha ido para o beleléu há uns quinze dias antes. Alguns comentavam que a peste levou o Seo Alvarinho. Outros, a depressão; não aguentou ficar sem os caprichos íntimos da mulher. Mas tem muita gente que jura que foi o porre que ele tomou na madrugada. Contam que viram o português fazer o arco da velha com o taco de sinuca depois de misturar cachaça e cava, com umas doses a mais de sildenafila, e sair na rua com as calças arriadas até as canelas, fazendo gato e sapato com as putas e os travestis que batem ponto nas noites claras de verão nas imediações do Largo São Benedito. Bateu com as dez!


Depois de ficar molhando o bico, em homenagem aos anos e anos de conduta etílica no Morte Dura, perdi as contas de quantas cachaças foram e cheguei em casa ao deus-dará no final da tarde trançando as pernas, chapado e completamente anestesiado. “Por que você bebe tanto?”. Porque eu gosto, mas não respondi. “Seu sem-vergonha”. E começou a desfiar o rosário. “Óh, vou te falar. Aquela história toda do seu sonho mexeu comigo. Encontrei a Odete na feira e contei tudo. Ela me deu esse papel aqui. Olha; é da Mãe Lola, uma cartomante que ela vai sempre e que costuma trazer sorte. Óh, o que tá escrito aqui: “resolvemos qualquer tipo de problema, seja amoroso ou financeiro. Marque sua consulta agora e a sorte vai sorrir para você”. E daí. “A Odete disse que a Mãe Lola sabe das coisas. Então, agendei um horário hoje com a vidente e você vai lá comigo. Você sabe que não gosto de ir nesses lugares sozinha”.


Ahhh... Essas videntes de araque que prometem ler até sobrancelhas. Não acredito nessas feitiçarias. Afinal, minhas simpatias sempre deram com os burros na água. Sinceramente, preferiria que fosse uma benzedeira, mas não estava com a mínima condição de responder alguma coisa, muito menos não.

“Eu sei que você tem algo para falar”, insistiu Mãe Lola. Eu prefiro ficar calado. “Quero te ouvir. Fala alguma coisa”, persistiu. Não quero ouvir. “Sabe o que é Dona Lola, meu marido, o Horácio, tá tendo uns trelelê aí com a sorte. A senhora poderia ver direitinho o que é isso”, rompeu Berta.


“Vamos ver aqui o que os astros nos dizem. Huum... Huum... Huum...” Não me contive. Ôh dona, a senhora sabe o que deu no bicho hoje. “Águia, na cabeça”. O quê!!?? “Você não esqueceu de jogar no bicho, não é Horácio Xavier Mendonça?”, se descabelou Berta, à beira de um ataque de nervos. “Seu cachorro!”


Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista; autor do livro Delírios do Isolamento.

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