Ainda é cedo
Por Roberto Cardinalli
"Era quase escravidão. Mas ela me tratava como um rei."
Renato Russo
A vida havia sido complacente com Torquato. Tinha família. Era casado com Erminda há mais de 10 anos com mais dois filhos pequenos: Mesquitinha e Mourinho. Já trabalhava como contínuo da repartição quando cursava veterinária. E por uma manobra política aqui e acolá conseguiu se manter no cargo como fiscal sanitário. Nunca teve paciência e disciplina para estudar para o concurso público. Assim, a fama de bom moço, pai de família e outros compromissos nunca revelados lhe empurraram por anos a fio para a enfadonha e a burocrática tarefa de carimbador de autos de infração.
No início a função lhe incomodava, mas com passar dos anos passou a se dedicar e até teve aumento de salário devido a sua produção diária de carimbadas, infinitamente superior aos dos colegas. “Sabe. A gente se acostuma com tudo na vida”, aconselhava, quando Erminda dava seus pitis semanais por conta de seus peidos após o jantar. “Desgraçado”, emendava a mulher.
Por conta da peste, foi demitido com louvor por correspondência.
E a vida ia caminhando a passos de tartaruga até nove meses atrás. Um bocado de coisas aconteceu de lá para cá. Por conta da peste, foi demitido com louvor por correspondência. Seu chefe escreveu uma carta detalhando sua sólida contribuição para com a repartição na última década, mas que só haveria soldo, a partir de agora, à disposição dos concursados, que foram logo mandados todos para casa. Ficou lendo e relendo a carta até tarde da noite. “Filhos da puta!”
“A partir daí, minha única preocupação era quando chegaria a próxima bebida”, contava a Virginia, uma mulher de aparência saudável, pequena, cabelos compridos, morena, com uma pinta escura no seio esquerdo e com uma bunda saliente. Debaixo da coberta, ela comentou: “Uma vez na vida outra na morte você fala sobre você”. “Converso cada vez menos”, respondeu Torquato.
Adorava os objetivos simplórios de Virgínia e, mais do que nunca, sentia um desejo imenso nas ejaculações liberais matutinas.
Estavam ali desde cedo. Torquato nos últimos meses passava as manhãs com Virginia, em uma casa de fundos de um bairro afastado da cidade. Conheceu a cidadã na fila do Bolsa Peste. Marcaram de se encontrar no mês seguinte no mesmo lugar. Ela chegou atrasada, mas ele reservou o lugar na fila para ela. E nesse dia ela o convidou para ir de ônibus até sua casa. No caminho, contou que era revendedora dos produtos da Avon, e que estava quebrada. Foi obrigada a mandar a filha morar com o pai em Minas Gerais.
Só viram seus rostos quando chegaram na moradia de alvenaria numa ruela pavimentada de paralelepípedos com quarto, cozinha e banheiro, após tirarem a máscara com um certo receio de se decepcionarem mutuamente. Não sabia porque, mas naquele casebre ele se sentia livre. Adorava os objetivos simplórios de Virgínia e, mais do que nunca, sentia um desejo imenso nas ejaculações liberais matutinas.
“Não sei onde estou com cabeça em querer ficar com você. Tenho outras prioridades”, falou Virginia.
“Não estou interessado. Fale somente o indispensável”.
“Para piorar as coisas, queimou a resistência do chuveiro. Você sabe trocar?”
“Porque não me disse antes. Se soubesse não viria.”
“Do que você é capaz? Mas preciso admitir que tenho sentimentos nobres por você. Comprou remédios para minha filha.”
“O que está passando na televisão”, perguntou Torquato.
Era raro ver Torquato sorrir. Os dentes não ficavam à mostra. A expressão era sempre séria, compenetrada e distante da realidade, seja ela qual fosse.
Ela se levantou; foi até a cozinha. Colocou água para ferver e separou um pacote de chá de camomila.
“Quer um?”
“Prefiro um conhaque.”
“Mas ainda é cedo.”
“Já não faz a menor diferença.”
Ela voltou com a xícara de chá e com o copo de conhaque pela metade.
“Sua mulher tá bem?”
“Ela me deu um beijo hoje cedo e me disse para lhe desejar boa sorte.”
Virginia deu uma assoprada no chá para esfriar um pouco. E tomou um pequeno gole. Engoliu rápido para não sentir a quentura do líquido meio amarelado.
“Vai se divorciar?”
“Agora era para a gente estar viajando. Esse mês iria tirar férias e havíamos planejado viajar com as crianças para uma colônia em Itanhaém”.
“O que tem lá?”
“Nunca irei descobrir.”
“Pelo amor de deus.”
Torquato deu dois goles robustos no copo conhaque, e se levantou.
“Tá com fome? Que comer alguma coisa?”
Ele foi até a porta do quarto. Olhou para Virginia sentada na cama só de calcinha e com uma camiseta cavada clara que deixava um dos peitos pularem para fora em qualquer movimento levemente brusco. Apagou a luz do quarto e desligou o rádio que há duas horas passava um especial de Roberto Carlos. Abriu ligeiramente a janela para entrar um ar. A casa tinha um fedor nauseabundo de tudo limpinho que impregnava o ambiente.
Começou a se vestir rápido. Colocou primeiro a cueca samba canção cinza com bolinhas pretas. Depois a camiseta de meia por baixo, a camisa de manga curta azul por cima; a calça tergal roxa com vinco e as meias brancas. Depois calçou os sapatos bico fino em tom de vermelho terra.
“Aonde você vai?”
“Pro hospital, meu terceiro filho vai nascer daqui a pouco”.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
Ilustração: desenho da revista erótica Catecismo, de Carlos Zéfiro.
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