Calhau
- URRO
- 16 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de jun. de 2022
Remédio bom esse!
Por Roberto Cardinalli
"Seis da tarde como era de se esperar. Ela pega e me espera no portão". Chico Buarque

Sempre quis envelhecer olhando uma bunda. Contratei a Marilda, uma mulata avantajada para ajudar com as coisas domésticas. Primeiro ela vinha uma vez por mês. Dava um jeito na casa, varria, passava pano com o lustra móvel, lavava o banheiro e deixava com cheirinho de pinho sol, lavava roupa com amaciante e até sabia passar camisa com manga. Ficava abismado com o jeito de como ela arrumava a gola da camisa. O colarinho ficava impecável. Sabia que as mulheres da repartição reparavam nisso.
Depois, ela passou a vir uma vez por semana. A casa é pequena; não tinha nada para ela fazer, mas só de acompanhar aquele par de nádegas indo pra lá e pra cá aflorava nossa intimidade. Sempre esperava que ela viesse com aquela calça jeans apertada, ou a minissaia branca ou ainda o vestidinho florido rodado. Vocês imaginam, né.
Um dia, quando ela estava abrindo a porta de casa, um garoto mal intencionado gritou do outro lado da rua: “que rabão”. Xinguei o filho da puta. Não era para seu bico, seu porco imundo. Fedelho de espermatozoide. Confesso que espinafrei, insultei, ofendi e destratei o pulguento.
Pensei que iria ganhar alguns pontos com a moça por defendê-la, mas percebi de canto de olho o sorriso malicioso dela. Sem nada para fazer, ela passava parte do dia sentada na sala lendo revista de fofoca de novela e assistindo qualquer coisa no vale a pena ver de novo. Depois ficávamos tomando café e conversando por algum tempo até o papo acabar.
Mais de oito meses sem trabalhar, a rotina era ficar esperando pelas quintas-feiras, o dia que Marilda aparecia. Nem precisava mais marcar, era sagrado e pontual. Sempre chegava às nove horas da manhã. Não queria que ela me visse acordar, devidos aos primeiros peidos incontroláveis do dia.
Às vezes, tinha a sensação de que ela sabia dos meus instintos nebulosos. Ela fingia ter maneiras refinadas, mas quando empinava os seios, ajustava a blusinha e levantava o quadril com volúpia me deixa completamente atormentado. Certa vez me disse que namorava o Norival, um jovem aprendiz de mecânico de automóvel, mas que já não sentia nada pelo mancebo. Tentou terminar o caso, mas o frangote não largava o osso.
Na semana passada, ela atendeu uma ligação telefônica. Era da repartição. “Nossa, quanto tempo não ponho os pés naquela espelunca”. Ela me contou que mais uma havia batido as botas. Era o oitavo. A média era um por mês. Desta vez foi o Rodrigues, que começou e terminou a carreira como continuo. Justo agora que ele estava para se aposentar e se encostar de vez na vida. Sempre me disseram que a morte aproxima as pessoas. Mas agora sinto que estou mais perto da fila e longe das pessoas vivas ou mortas.
“Vou te levar no quintal”, disse ela.
Eram quase três da tarde e mesmo com o sol da primavera estalando na cabeça ainda estava com o pijama cinza, o chinelo havainas pretos e sem nada para fazer. Ela me pegou pelo braço. Passamos pela cozinha. E vimos uma garrafa de cataia pendurada num suporte de palha na parede do lado esquerdo bem perto da geladeira.
“Parou de beber”, perguntou. “Faz um tempo que a garrafa está do mesmo jeito”.
“Não. Esperando o aguardente ficar melhor”.
“Me disseram que a cataia é boa para tratar azia e má digestão, cicatrizar feridas e ajuda quem tem problemas sexuais”, disse ela, tentando puxar conversa.
“Remédio bom esse, hein!”, respondi.
Passamos pela porta da cozinha e entramos no quintal pequeno com duas cadeiras de praia coloridas com faixa azul, branca e verde. Olhamos os ramos de mato no muro de tijolo de concreto sem pintura, e um caminho de pedra entre o gramado cheio de formigas. Sentei primeiro. Depois pedi para ela se virasse. Ela fez que não entendeu, mas se virou para ajeitar a outra cadeira e ficar bem de frente. Sabia que a outra a cadeira estava quebrada. Fiquei apreciando aqueles minutos como se fossem os últimos.
“Olhe”, ela disse. “Um caracol.”
“É o Gervásio, amigo das antigas. Pensei que já tivesse visto ele por aqui.”
“Não; nunca vi”, disse ela.
“É que ele costuma passear durante a noite. Você sabia que o caracol é um hermafrodita incompleto”.
“Como assim?”, perguntou.
“Possui dois sexos, mas precisam de um parceiro para realizar a cópula ou acasalamento e a fecundação.”
“Que coisa esquisita”, ela disse. “Ui! Tive uma sensação estranha agora.”
Vi que os pelinhos do braço dela estavam arrepiados.
Naquele momento pensei naquela bunda. Nas coisas de casa. No colarinho da camisa. Na cataia. No caracol. Na sensação estranha. No arrepio. Ia convidá-la para morar aqui comigo. Ia pedir para ela dar um pé na bunda do Norival. E finalmente disse: “me leve para a cama; acho que preciso dormir um pouco”.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
Ilustração: desenho da revista erótica Lambada na Bunda.
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