Recontos Virais n. 6 (A Cura)
Por André Prada
“O sujeito que me fará acreditar na imortalidade da alma ainda está para ressuscitar” - Millôr Fernandes
Para o mestre Vadinho, com carinho
(z)OOOOOOOOOOOOO(i)MMMMMMMMMMMMM... o zumbido ecoava cada vez mais forte depois das incontáveis doses de Teich engolidas na mística companhia de Vivi Agra. Teich era uma bebida à base de hidroxicloroquina, gelo e limão, muito popular durante a pandemia. Causava uma espécie de torpor messiânico, proporcionando visões alucinatórias de que a cura da peste estava próxima.
Andava sendo acometido por sonhos loucos, com gente que já nem mais por aqui andava, e comentava com Vivi sobre eles meio que impunemente, mesmo sabendo que não se deve comentar seus sonhos com ninguém, a não ser com os psicanalistas e mesmo assim, omitindo um detalhe aqui e outro acolá.
- Ledo, Ledo, meu sargento sem engano e sem medo, me fale um pouco sobre os sonhos que andam te atormentando durante esta época de gripezinha infernal.
Vivi, a quem nada passava batido voltou a baila (mulheres e psicanalistas adoram voltar a baila...).
- Ledo, Ledo, meu sargento sem engano e sem medo, me fale um pouco sobre os sonhos que andam te atormentando durante esta época de gripezinha infernal. Você falava frases desconexas enquanto transávamos, citou nomes de pessoas, frases ininteligíveis, parecia um louco, um bêbado em estado de graça: "a cura!, a cura!" - parecia possuído por pessoas que já não andam mais por aqui... "Vadinho! Vadinho!" - achei estranho, comentou com certa graça a budista.
Ele dizia que minha companhia etílica o ajudava a raciocinar ciência...
Antes de entrar em maiores explicações, mergulhei nas brumas do passado. Vadinho... grande médico visionário, uma das melhores cabeças de sua época, vivíamos nos esbarrando durante minhas rondas pelos botecos nos bairros mais longínquos da cidade. Ele os chamava de "vendinhas". Um gênio daquele porte e que gostava de "vendinhas"... Ele dizia que minha companhia etílica o ajudava a raciocinar ciência, vai ver achava que minhas histórias do submundo do crime tivessem algo a ver com as intrincadas equações bioquímicas que ele declamava como se fosse o Cântico Negro de José Régio com o qual terminava nossos saraus etílicos, sempre em alto brado, fazendo a "vendinha" toda parar e escutar embe-be-vecida:
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou,
Não sei por onde vou
Sei que não vou por aí
Os aplausos dos pinguços eram sinceros e comoventes. Vadinho era aquele tipo de pessoa que nos ilustrava brincando de ensinar. Um mestre, ele era um mestre. Tenho certeza que se por aqui ainda estivesse, matava esse Corona no peito e chutava no ângulo, bem lá onde o morcego dorme na luz do dia e a coruja faz seu ninho à noite, e inventaria uma maneira, uma cura, que nos libertaria da clausura. A loucura é a mãe de todas as curas, filosofei com o zumbido nas alturas...
- Vivi, meu bem, você que é cheia dos salamaleques extraterrenos, não saberia de algum lugar onde eu pudesse falar com gente de outro mundo?
Tenho pensado muito em um amigo nestes tempos negros, vou tentar contar pra ele o que anda acontecendo aqui na terra, talvez ele possa nos tirar dessa encrenca.
- Sei de uma meditação coletiva que vai acontecer hoje na Pedreira dos Chapadões, podemos dar um pulo lá, mas duvido que você, cético como um vinagre, vá conseguir se conectar com alguém de outro mundo e depois já tomamos muita cloroquina por hoje, mas podemos ir se você quiser.
Sim, queria, me sentia suficientemente entorpecido para encarar a malucada na beira daquele abismo; pelo menos teríamos que manter distância e evitar o contato social.
Chegando lá, escolhemos a pedra que mais tinha a cara do Paulo Coelho, nos sentamos e passamos a emitir o mesmo som do meu zumbido, (z)OOOOOOOOOOOOO(i)MMMMMMMMMMMMM...
Neste exato momento desmaiei e passei a flutuar em meio às nuvens nicotínicas que envolviam o semblante do meu mestre e amigo.
A cura estava próxima.
André Prada é médico e cronista.
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