Cloroquina, gelo e limão
Por Roberto Cardinalli
"O homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado". Ernest Hemingway
Isso não é da minha conta. Jamais escreveria isso; e se vocês disserem que fui eu quem falei, eu nego, nego, nego e chamo vocês de mentirosos! O fato é que Alcebíades Afonso Pompeu era um velhote de mais ou menos uns oitenta anos. Apesar da idade, saia religiosamente todo o dia às seis horas da manhã de casa. Ia a pé até o centro da cidade. Tomava um café preto puro e seco na padoca da Regina, conhecida na vizinhança como a Soberana.
Depois se dirigia à única banca de jornal que vendia os raros periódicos impressos existentes nesses tempos atuais. Dava uma olhada nas manchetes do dia, e revirava o jornal para ver as notícias que estavam abaixo da dobra. Mas sempre levava um exemplar da “A Gazeta de Ontem”, afinal, dizia ele orgulhoso, era o único diário que fazia jus ao nome: os fatos que lia, realmente, ocorriam no dia anterior. Gostava disso.
Conheceu as celebridades do jet set nacional e foi cúmplice de políticos e empresários da mais alta estirpe da época que davam umas escapadas íntimas vespertinas com suas generosas e engraçadinhas mancebas. Tempos áureos.
Na volta, passava em frente ao grande hotel da cidade dos anos cinquenta, e que havia se tornado um imenso templo de uma neopentecostal, com direito a um amplo estacionamento externo para os velozes e os furiosos automotivos. Ficava observando por alguns segundos do outro lado da avenida a gloriosa fachada do prédio em estilo art déco que marcou os ares de progresso e modernidade da cidade. Os quartos eram o fino do luxo, bem amplos, com janelas de madeira lustrosa e venezianas que não se fabricam mais. Dizem que foi o primeiro hotel a ter aparelho de ar condicionado.
Lá foi seu único emprego. Começou aos quatorze anos como contínuo, passou por vários setores, até se aposentar como gerente-geral. Conheceu as celebridades do jet set nacional e foi cúmplice de políticos e empresários da mais alta estirpe da época que davam umas escapadas íntimas vespertinas com suas generosas e engraçadinhas mancebas. Tempos áureos.
Em seguida, dava uma passada no bar Morte Dura. Pedia um pastel de carne. Normalmente era o último da fornalha do dia anterior. E caprichava na dose da “marvada”. Pelas suas contas fazia essa rotina matinal durante os últimos incansáveis trinta anos. Mas de repente... Tudo mudou.
Engaiolado dentro do pequeno apartamento há seis semanas, o ranzinza, cansado de anotar em sua velha caderneta o número de mortes diárias pela peste, achou que estava bem próximo de entrar para as estatísticas. Faltava apenas uma folha no seu mórbido diário particular.
Na noite anterior lembrou de seu falecido pai. O magricela Viriato Valentin Pompeo sempre contava os dramas da peste do século passado. Entre vários relatos, seu genitor propagava um boato que correu entre os moribundos do bairro. Um famigerado e milagroso remédio caseiro ajudaria a evitar a devastação. A explosiva mistura era composta de cachaça com limão e mel. Viriato Valentin Pompeo comentava que o preço do limão disparara e a fruta sumiu, por uns bons tempos, das quitandas. A batida caipira do interior, mais tarde, virou...
Duas senhoras que embarcaram cheias de vida em Recife chegaram murchas na cidade maravilhosa.
Com tantas informações (desencontradas), o tartarin decidiu que precisava voltar imediatamente à sua jornada diária. Mas, para isso, precisava estar devidamente “bombado” para enfrentar a peste. Sorrateiramente, saiu do apê sem ninguém perceber. Passou no empório do seo Gomes perto da sua casa. Pegou duas dúzias de limão e um pacote de um quilo de açúcar. Pediu para pagar fiado na caderneta da conta da filha, já que o pândego alegou estar sem dinheiro.
Andou mais quatro quarteirões e parou na farmácia da dona Demerara. Curioso??? Seu pai havia comentado que foi o navio chamado Demerara, que partiu de Liverpool, fazendo escala em Lisboa, em Recife, no Rio de Janeiro, e com destino final em Buenos Aires, que trouxe a peste para o Brasil varonil em meados de março de 1918. Já na viagem ficaram dois pelo caminho. Duas senhoras que embarcaram cheias de vida em Recife chegaram murchas na cidade maravilhosa.
Na drogaria, teve de implorar para entrar. Nunca ia utilizar aquele pano em frente ao seu rosado e desgastado rosto. Só entrou porque a aporrinhante atendente o obrigou a comprar uma máscara. Devidamente mascarado, adentrou e foi ao balcão separado com a tétrica faixa amarela e preta. Pediu três vidros de hidrocloroquina. Achou que pagou os olhos da cara pelo vidrinho, e deu no pé rapidinho. Voltou “correndo” para casa.
Em casa, foi direto para a cozinha. Pegou a faca. Cortou o limão ao meio e, depois, em fatias meia-lua finas. Esmagou levemente as fatias de limão com o açúcar em um copo baixo. Encheu o copo com gelo e colocou a hidrocloroquina. Misturou e finalizou com fatias de limão.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
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