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Calhau

Atualizado: 23 de nov.

Mais uma dose

Por Roberto Cardinalli


Porque eles, vendo, não veem; e, ouvindo, não ouvem nem compreendem.

Mateus 13:13.

 

O Morte Dura foi o último bar a fechar. A intolerância tinha definitivamente chegado onde não deveria chegar. Encravado numa esquina perdida no centro da cidade, ainda recebia seus poucos, mas fieis clientes. Sabiam que deveriam ficar em casa.

Mas a peregrinação diária nos finais de tarde já estava incorporada na mente desmesurada e nas desgastadas solas de sapato daqueles ébrios contumazes scofflaws.


Claro que as imensas portas da baiuca estavam fechadas. Mas, como uma senha, três batidas ligeiramente rápida, que soavam à alucinação musical como “ca” “cha” “ça” eram claramente percebidas pelo seo Alvarinho, um português pão-duro de Leiria, na província da Beira Litoral, na região central lusitana, dono da bodega.


Naquele final de tarde de sexta-feira, cumpri todo o ritual. A senha decorada há alguns dias me permitiu os primeiros goles do final de semana ainda por vir. Pedi uma cataia, bebida muito popular no litoral sul do Estado de São Paulo, preparada à base da folha de uma erva e curtida na pinga, de preferência a mais bruta. Os mais chiques e adeptos da maledicência costumam chamar a birita de uísque brasileiro.


O bom do Morte Dura, entre outras caninhas, é que sempre nesse horário um vizinho esquisito explora sua coleção de vinil de Ludwig van, um alemão que nasceu no antigo reino da Prússia e cuja família era de origem flamenga. Deu para perceber, naquele dia, logo de cara as primeiras notas da Sinfonia Número Nove em Ré Menor. Tenho que confessar que tenho certa afinidade com Ludwig, pois dividimos desde cedo o quarto para os surdos, e sem respiradores... Hã???


Por um grave problema auditivo, que me acompanha há mais de cinquenta anos, já tinha perdido quase setenta por certo do ouvido direito e sessenta por cento do ouvido esquerdo. Apelando aos mais respeitados matemáticos do mundo, fiquei sabendo que me restava pouco menos de cinquenta por cento de audição (produtiva).

Aguardando amigos, não pude deixar de ouvir (incrível?) um belo duelo verborrágico na mesa ao lado. Quero dizer a dois metros de distância, pois estamos determinados a ser controlados. Podia imaginar que era uma discussão de alto nível, importante talvez. A única dúvida que pairava era: quem podia saber qualquer coisa hoje em dia?

No meio da discussão, o sebento Marcos Miranda se levantou da mesa. Gesticulou. Aumentou o tom de voz. E bradou.


Só é possível ter fé na ciência. O conhecimento é o grande antídoto do veneno do entusiasmo e da superstição. Preste atenção, não sou eu que digo isso; é Adam Smith. Temos de seguir seus ensinamentos e preceitos. Fora da ciência não existe razão. Os números dos epidemiologistas confirmaram que temos que nos separar para sobreviver. Não se pode jogar tudo ao mar, durante a tempestade. A questão shakespeariana hoje é o que fazer com o dia?


Arnoldo da Fonseca, um conhecido chato de galocha das redondezas, imediatamente redarguiu.


A ciência não pode estar acima de Deus. Sei que você é um ateu não praticante, mas...

Marcos Miranda rebateu.


A ciência. Os números. Os cálculos. A física. A química. Daqui a pouco tempo até os smartphones ponto qualquer coisa poderão provar tudo.


Arnoldo da Fonseca, que não levava desaforo para casa, sentenciou.


Se um dia a ciência provar que Deus existe, eu deixo de acreditar em Deus, oras bolas.

Tomei mais uma dose da cataia.



Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento

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