O pior cego é aquele que quer ver
Por Roberto Cardinalli
“O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. Milton Nascimento
Péricles Marconato não conseguia entender patavina o por quê estava com a faca no seu pescoço. Tudo bem que esse filho de imigrantes do sul da Itália não era o sujeito mais amistoso do mundo. A vida foi um tanto cruel com ele. Depois de fazer vários bicos, resolveu ser fotógrafo.
A carreira parecia promissora. Fez cursinho, aos sábados à tarde, em um daqueles prédios cheios de galerias de São Paulo. Foi vendedor de loja de equipamento fotográfico no centro de Campinas. Depois, assistente de fotógrafo de casamento e logo conseguiu um estágio no departamento de fotografia do jornal da cidade.
Virou expert em revelação de filme preto e branco e num plantão de domingo fez sua primeira foto para uma reportagem que ilustrou a página policial do “A Gazeta de Ontem”.
Boêmio, após o encerramento de cada edição sempre passava no Morte Dura, para encerrar a madrugada. Foi lá que tudo aconteceu. Cheio de mutretas, costumava brincar com os colegas de jornal de colocar a tampinha da garrafa no olho.
E uma noite… A tampa escorregou e rompeu sua córnea. Ficou cego de um olho e, com o passar dos anos, a outra vista ficou opaca, que resultou numa breve aposentadoria por invalidez. Acabou como lambe-lambe na Praça Bento Quirino, em frente à Igreja do Rosário.
Chegou até a ganhar uns trocados, mas sem foco, desistiu. Quem não o conhecia direito estranhava porque ele começava um bate-boca com um enfático “veja bem”.
Jorge de Burgos é um velho frade cego que guarda a biblioteca no filme "O Nome da Rosa"
Naquela manhã, resolveu sair cedo. Havia visto na televisão que as lojas iriam começar uma daquelas promoções tipo “bléque fraide”. Não sabia direito o que era aquilo, mas nunca se dispôs a procurar no “Gugol” o que significava isso de fato. Definitivamente era um homem da cerveja.
Trancafiado em seu pequeno apartamento de um quarto próximo ao centro da cidade queria tomar “uma” em um copo americano, para relembrar os velhos tempos dos botequins. Achava um horror aqueles copos compridos, chamados tulipas, trazidos por garçons mal-intencionados dos barzinhos chiques, que constavam das odiosas listas de bares para paquerar.
Mais ou menos a uns dois quilômetros de onde morava tinha ouvido falar de um lugar chamado “Maravilhas do Bar” que abriria por volta das sete da manhã. Acordou cedo. Fez um “xixo”. Tomou um banho quente. Escovou os dentes. Fez café. Colocou sua calça de tergal boca de sino com vinco, uma camiseta de meia por baixo e a camisa listrada marrom e amarela.
Calçou o sapato velho sem meia. Arrumou os cabelos despenteados cheio de pontas e ajeitou a boina azul escura comprada em uma loja de produtos chineses. No escuro do quarto, passou pela mulher ainda deitada, deu um beijo no rosto dela, e pegou o pano em cima da cama para proteção contra os vírus que continuavam a circular pelas redondezas. Sentiu um cheiro diferente. Voltou para cozinha e resolveu aproveitar para descer com o lixo.
Leyde Consuelo era garçonete da boate Fim dos Tempos, espelunca que Péricles Marconato começou a frequentar depois de se desiludir com a vida. Ia lá quase todas as sextas-feiras. Pagava a entrada, e tomava a sua gelada sempre encostado na parede ou sentado no balcão empoeirado, ouvindo as músicas hit parede que faziam sucesso nas rádios FMs da época.
Raramente conversava com alguém. Via as silhuetas das moçoilas dançarem, como sirigaitas, mas nunca tentou nada. Queria ser o sedutor Don Juan de uma única conquista. Leyde Consuelo, em uma noite fria e de pouco movimento, tentou a primeira abordagem com uma conversa mole sem pé sem cabeça. Depois de dois minutos, Péricles estrebuchou: “Não conheço você e nem quero conhecer.” A única coisa que Péricles queria naquele momento era matar o inimigo com o tédio.
Ninguém sabia ao certo, mas Leyde Consuelo era, pelo menos, vinte anos mais nova que Péricles. Tinha vindo para cá tentar a sorte. Aliás, sorte é imprescindível na vida. Seu filho adolescente morava com a avó numa pequena cidade nos Cafundós do Judas.
Passaram-se mais algumas sextas-feiras para a coisa engrenar. Viraram amigos. Depois, amantes. Ela ainda estava de rolo com um universitário barbudinho. Depois, namorados. Só sei que em menos de dois meses estavam casados. Dizem que o casório foi numa pequena igreja quase desativada lá pelos lados da Rua Abolição, e apenas o padre Chico foi testemunha de como Péricles chegou completamente bêbado ao conúbio.
Por conveniência, cada um morava em sua casa, e se encontravam às vezes para “namorar”. Ela largou a boate e estava em busca de outros tempos. Se davam bem, tomavam uns “goros” juntos, e se divertiam, apesar das crises absurdas de ciúmes por parte de Leyde Consuelo.
Já a dúvida amarga que perseguia Péricles Marconato era se Leyde Consuelo era ou não uma mulher atraente. Tinha uma visão bem nebulosa da moça. Pudera! Depois de trinta minutos de caminhada, ele chegou à “Maravilhas do Bar”. Foi o primeiro da fila, e nem percebeu que o segurança grandalhão de uniforme azul ficou olhando fixamente para ele quando entregava a senha de número um.
Pediu que devolvesse o papel quadradinho rosa quando saísse da loja. Quase uma centena de pessoas se aglomerava atrás de Péricles. “Sou um homem de sorte”, pensou naquele momento.
As portas finamente se abriram pontualmente às sete, e ele entrou no salão. Procurou os copos por aqui, por ali. E nada. Estava irritado com a quantidade de pessoas próximas a ele. Tinha decidido ir embora quando resolveu perguntar para a esforçada atendente que dava risadinhas imbecis e maliciosas ao falar com Péricles.
“Moça, tem copo americano?”, perguntou. Com cara de quem pensa, a moça respondeu. “Copo americano? O que seria isso? Se for importado não tem não. Só trabalhamos com produtos nacionais. Olha, meu senhor, tem uns copos ali no final desse corredor. E jogos americanos ficam lá perto do caixa.”
Santo deus! Melhor não comentar. Pensou: “As listras de uma zebra nunca mudam”, e, razoavelmente educado, só disse um protocolar: “Obrigado”.
Seguiu em direção ao final do corredor. Lá só tinha taça disso, taça daquilo. Nada! Já estava quase desistindo quando viu no pé da prateleira dois legítimos copos de vidro americanos. Levantou-os para se certificar de que realmente eram os que queria. Ficou mais feliz quando viu o preço. Um real cada. E na etiqueta de promoção: dois por dois. Maravilha.
Imediatamente, pensou em Leyde. Passou no caixa e pagou com duas moedas de um real. Hoje sim, pensou, o porre será raiz. Quando chegou em casa, Leyde correu para a cozinha, pegou a faca amolada anteontem e partiu pra cima.
“De quem é essa calcinha na sua cara?”.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento
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