Calhau
- URRO
- 9 de mar. de 2024
- 2 min de leitura
Eu lavo as minhas mãos
Por Roberto Cardinalli
"As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta". Arthur Schopenhauer
Quanto vale a dor? É possível mensurar o que sentimos? A dor é mais do que uma experiência meramente física. Tem impacto emocional. Psicológico. Traumático. Até que ponto as nossas perdas nos afetam. A fórmula da felicidade sempre dá negativa, afinal você sempre tem o que perder. A dor pode ainda ser permanente e se perpetuar na sua alma. É o caso de lembrar William Shakespeare que dizia aos seus amigos mais próximos: “lamentar uma dor passada no presente é criar outra dor e sofrer novamente”.
Não é prematuro dizer que a dor tem uma ligação visceral com uma tomada de decisão, que nem sempre cabe recurso. Assim, você se torna sempre a última instância. Um poder supremo que não estamos preparados para exercer. Códigos íntimos nos quais cada um busca respostas herméticas, a perguntas que jamais serão formuladas.
O tempo é o terceiro elemento. Atrelar o relógio ao momento significa dar um veredito em uma fração de segundo que pode ter reflexos por dezenas de anos, e levar toda a agonia resultante de um conflito para dormir junto no sono eterno do seu ataúde amadeirado em tons de tijolo.

Arte de Kevin Garner do ator Hugh Laurie, em Dr. House
***
Não tínhamos chegado nem ao auge da pandemia e a unidade de terapia intensiva do hospital já estava abarrotada. Apenas um leito vago no comprido e interminável corredor branco e sem janelas. A mãe idosa de cabelos grisalhos do médico responsável pelo setor acabava de dar entrada na recepção com sintomas gravíssimos da peste.
Ao mesmo tempo em que a equipada e barulhenta ambulância do Serviço de Atendimento Médico de Urgência, conhecida popularmente como Samu, descarrega de forma atônica a maca com a esbelta filha do doutor com graves fraturas no corpo. Seu envenenado Caoa Cherry importado da China foi deverasmente abalroado por outro motorista que deveria ter permanecido em casa nos tempos obtusos.
Quem merece ter prioridade no atendimento? Quem resistiria mais tempo? Quem trouxe mais felicidade? Quem daria mais alívio na dor?
Enfermeira: E aí doutor?
Médico responsável: Eu lavo as minhas mãos.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento
Comentários