Quer mudar seu plano?
Por Roberto Cardinalli
"A vida como ela é". Nelson Rodrigues.
Vamos resolver de vez essa questão e colocar os pingos nos is. Beltrano Mitri estava preparando o conteúdo de mais uma chatérrima aula à distância online que teria de dar para os alunos do terceiro científico que prestariam sabe se lá como e quando o vestibular, na hora que o telefone tocou.
Trrrim-trrrim. Trrrim-trrrim. Trrrim-trrrim. “Não atenda”, disse.
“Mas pode ser algo importante”, respondeu Cininha do Socorro, sua amasiada há mais de vinte e poucos anos.
“Não atenda”, repetiu.
Hoje em dia só quem liga para alguém de telefone fixo são as cretinas operadoras de telemarketing querendo vender planos fajutos de banda larga.
Beltrano Mitri era um professor de história brasileira em final de carreira que adorava riscar o quadro negro com a linha do tempo, subdividindo o traço em períodos nas quais conhecia de cor e salteado. Tinha se especializado na República Velha. Adorava esse termo. Quanto mais velha; melhor, bradava aos quatro cantos da antiga e ventilada sala de aula. Gostava de pentelhar os alunos e as alunas, cobrando datas e nomes dos expoentes do início do século vinte.
Beltrano e Cininha se conheceram no Colégio Francisco Glicério, o primeiro grupo escolar de Campinas. No quadrilátero entre a Moraes Sales, a Cônego Cipião, a Irmã Serafina e a Boaventura do Amaral, margeando as Praças Professora Sílvia Simões Magro e Praça Annita Garibaldi, o educandário foi projetado por Ramos de Azevedo em estilo eclético com elementos neorenascentistas e neogóticos. Inaugurado em 1897, o prédio tinha dois pavimentos com quatro salas de aula no andar térreo para as garotas e quatro salas no andar superior para os rapazes, com acesso por duas escadas laterais que terminavam num corredor de distribuição para as salas.
Beltrano Mitri começou lá sua carreira letiva, após chegar por aqui vindo das profundezas do oeste paulista. Cininha era a espevitada monitora da escola, conhecida popularmente como “dona” pelos colegiais. Cininha tinha uma quedinha por Fulviano Lisboeta, professor de educação artística que não dava a mínima bola para ela.
Era viciada em curso por correspondência. Preenchia e recortava os cupons publicados em anúncios das revistas mais prestigiadas da época, nos quais o interessado poderia fazer sua matrícula sem pagar um tostão. Mas as prestações saiam os olhos da cara.
As propagandas usavam desenhos ilustrativos de profissões e muitas mensagens, como: “Envie o cupom, se você deseja progredir e ganhar mais, qualquer seja a sua idade ou sexo”, ou “Triunfe! Conquiste prestígio pessoal e ganhe muito dinheiro aproveitando apenas suas horas de folga para melhorar sua cultura e posição. Pelo mundialmente famoso método de ensino por correspondência ‘Professor em Casa’”.
Beltrano Mitri ajudava a companheira como podia nas lições de casa. Por dentro, se autoflagelava. Jamais aceitara esse tipo de canalhice. Fanfarrões, berrava no banheiro, quando ela não estava em casa. Sua paixão mesmo era a Revolução Constitucionalista de 1932.
Na escrivaninha do quarto-escritório em que estudava tinha emoldurado o brasão do Estado de São Paulo, um escudo português de goles e uma espada ao centro, entre um ramo de louro à direita e um de carvalho à esquerda, criado pelo pintor realista Wasth Rodrigues. Não passava um dia ser ler o lema em latim “Pro Brasilia Fiant Eximia”, que Cininha do Socorro jamais ousou perguntar o que significava.
Afinal, uma vez levou uma dura daquelas. Alguém chegou até a pensar em chamar a polícia. Ele soltou os cachorros quando ela perguntou o que tinha ver regra matemática M.D.C. com o M.M.D.C, da revolta paulista. Beltrano Mitri subiu nas tamancas para explicar que o acrônimo da história representa as iniciais dos nomes dos mártires do movimento, que culminou no levante, eclodido em nove de julho daquele ano. Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo foram mortos pelas tropas federais ligadas ao Partido Popular Paulista, um grupo político-militar sustentáculo do regime.
Sua ligação com a revolução começou quando criança. Era da mesma turma de escoteiro de Aldo, morto durante um dos bombardeios causados pela Aviação Federal do Brasil. Ele estava ao lado de Aldo no momento do ataque na estação de trem da Fepasa. O bombardeio atingiu também a Fábrica MacHardy, nos Campos Sales esquina com a Andrade Neves; e uma casa na Visconde do Rio Branco. Beltrano teve sorte. Sorte? Os estilhaços atingiram suas pernas, que o deixou coxo para o resto da vida.
Todo o mês de julho, Beltrano faz questão de visitar os restos mortais de Aldo, que repousam no Mausoléu Constitucionalista, no Cemitério da Saudade, ao lado de outros tantos heróis dessa epopeia. Diz a lenda que é a única criança que recebeu tal homenagem.
Beltrano Mitri também tinha o estranho hábito de se imunizar preventivamente contra uma eventual doença, seja ela qual for. Tomava doses crescentes e diárias das drogas que os enxeridos vizinhos comentavam, sempre misturadas com um gole de Dreher. Até essa tal cloroquina com limão e sal passou a tomar. Chamava carinhosamente a bagaça de clô de burro.
O telefone tocou de novo. Trrrim-trrrim.
“Não atenda!”, gritou.
Tendo de dar a mão à palmatória, Beltrano Mitri voltou a preparar a aula que daria pelo famigerado zoom no dia seguinte. Iria falar sobre a peste espanhola, que deixou o povo ao deus dará.
Não poupou nem mesmo o presidente da República. Rodrigues Alves, eleito em março de 1918 para o segundo mandato, caiu de cama espanholado e não tomou posse. O vice, Delfim Moreira, assumiu interinamente em novembro, à espera da cura do titular. Rodrigues Alves morreu em janeiro do ano seguinte, e uma eleição fora de época foi convocada.
Concentrado, não ouviu o telefone tocar novamente. No segundo toque, Cininha do Socorro correu e atendeu a chamada. Do outro lado da linha uma voz robotizada falou: “quer alterar seu plano”?
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento.
Comments