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Calhau

Apenas um pouco de sorte

Por Roberto Cardinalli


"Se você tem andado de galocha. Está na fossa e sem forças pra sair. Não querendo nada com a vida. Um suicida à beira de explodir..." Lord K e Angeli


Isso pode parecer ridículo, mas preciso de sua ajuda. Foi o que me disse um velho magro e baixo, de óculos fundo de garrafa com armação vintage dourada muito usada na década de setenta, enquanto tomava um gole de café num copo de plástico na porta da padaria da Regina. Ele estava a uns dois metros de distância comendo um pão na chapa e segurando um pingado escuro na mão esquerda.


Vestia uma calça jeans surrada e uma camisa de flanela xadrez vermelha e azul marinho, e por cima, uma japona. Com uma máscara pendurada apenas por uma alça na orelha direita, dava para perceber que tinha uma curvatura anormal em sua coluna, proporcionando-lhe uma aparência de corcunda. Claramente seu pescoço ficava inclinado para frente, principalmente quando falava.


“Rapaz!!!”, disse Sandoval Veneziano, enquanto dava um chute num percevejo que se aproximava do seu sapato bico fino marrom. Fiquei observando o percevejo voar pelos ares. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, saiu da padoca uma dona com os seios fartos, quase explodindo para fora do sutiã, vestida com essas calças leggings de ginástica preta, coladas ao corpo.


“Agora não adianta mais”, interrompeu o pobre diabo. Não entendi.


E desandou a falar. “O ano nem começou e praticamente já acabou. Parece que há muito tempo não tenho mais o que fazer”.


Tossiu. Uma. Duas. Três vezes.


Sandoval não aguentou as buchas da estagnação. Quebrou. Era sócio minoritário do sebo “É só o que tem”, uma casa com a pintura desbotada do início do século passado de frente pequena, mas cumprida, com vários cômodos, onde montou a lojinha bem no centro da cidade, e da qual fazia sua modesta retirada mensal. Apesar de não ter grandes variedades de opções, Sandoval costumava dizer que no “É só o que tem”, você encontrava o que procurava.



No Vida Dura, se orgulhava de comentar que era o único sebo da região que tinha um exemplar do LP do Lord K, uma banda de rock do final da década de 80 cujos integrantes se apresentavam inteiramente pelados. O trio era formado por Lord K, Emerson Villani e Kláudia Moras. Chegaram até a se apresentar no programa de Hebe Camargo, quando a banda gravou seu álbum duplo ao vivo chamado “Mini Orgasmo Confidencial”, no qual tinha o rock da Rê Bordosa e do Rallah Rikota, composições em parceria com Angeli.


Foi a Kláudia Moras, vestida apenas com um roupão branco e mais nada por baixo, que lhe deu o disco autografado quando a banda se apresentou uma única vez por aqui, no Teatro Castro Mendes. Escondidas nas velharias do sebo ainda eram possíveis encontrar as edições de Playboy e Sexy da qual a vocalista apareceu livre, leve e solta.


Como desejou que ela retornasse a Campinas. Era uma ruiva, alta, magra, esbelta; um corpo que serpenteava enquanto cantava e dançava as canções de gosto duvidoso do lorde. Na saída do teatro, naquela noite, ainda com aqueles desejos mais sinistros, e sob os efeitos de bauretes e coquetes, se arrependeu por não continuar aquele papo com a moça. Ela parecia tão solícita.


A gente poderia ter pego um táxi e ir parar lá na região do Largo Santa Cruz, no Bate-Papinho, fechar a noite com mais umas doses de uísque e uma canja para aquecer. Quem sabe ela poderia até acordar no dia seguinte apenas de calcinha no meu colchão. Naquela época, morava numa kit perto do Furlan, no Botafogo, e não tinha cama. O colchão era o único objeto do apê fedorento com odor de pinga e cigarro.


Tossiu. Uma. Duas. Três vezes.


Acendeu um cigarro. Jogou o palito de fósforo no chão. Tragou e ficou olhando a fumaça se dissipar na manhã de céu claro e azul. Chegou um pouco mais perto e me mostrou o bilhete que a noiva com quem morava há poucos meses, desde que foi despejado da pensão perto da rodoviária onde dormia após o sebo ir à falência, lhe deixou logo cedo.


“Querido, preciso que você vá embora. Você sabe, meu filho vai chegar. Você sabe quanto eu te amo, mas quando voltar hoje do trabalho não quero mais você aqui”. Beijos da sua eterna Ophidia.


Que jararaca!, pensei. As cobras mudam de pele, ficam cegas e sentem cheiros pela língua.


“Sabe”, contou Sandoval. “Chegou um tempo que pensei que íamos envelhecer juntos. Não tínhamos mais a pretensão de fazer planos. Não queríamos mais ter sonhos ou expectativas. Apenas envelhecer. Era isso que queríamos. Só isso. Envelhecer. Envelhecer. Envelhecer. Dá pra entender”, e balançava a cabeça para os lados, o que acentuava ainda mais sua silhueta corcunda.


“Acabou. O ganha pão. O cafofo. A vida”, arrematou Sandoval, antes de levantar as sobrancelhas. Espessas.


Tossiu. Uma. Duas. Três vezes.


“Acho que estou com uma ligeira febre”, se queixou.


Eu ia responder alguma coisa qualquer quando Sandoval disparou. “Sinto que minha morte fará mais sentido que minha vida”.


“Nunca fui feliz”, complementou, olhando para o vazio. Algumas lágrimas saíram dos seus olhos. Tentou enxugar com a manga da japona.


“O senhor pode me desejar um pouco de sorte. Você é meu único amigo agora”.


Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento.


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