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Calhau

Lusco-Fusco

Por Roberto Cardinalli


"A redação era a continuação da rua" Ruy Castro


É impressão minha ou o mundo está ficando maluco. Quando Rangel Javier percebeu que não tinha vocação nem talento para o trabalho resolveu bater na porta do Gazeta de Ontem. Com pouco mais de vinte anos e há menos de um ano por aqui, tinha vindo dos pampas tentar a sorte como meia armador de basquete do Remadas Esporte Clube.


Foto: Felipe Lima


Até que era ligeiro, mas seus um metro e sessenta e cinco não agradou a comissão técnica. Não passou na peneira empoeirada dos cartolas da associação.

No jornal foi recebido pela recepcionista que foi com sua cara e por conta de alguns favores conseguiu que fosse contratado como radioescuta. Começou a gostar daquele ambiente insalubre com cheiro de cigarro, fumaça por todos os lados e as batidas estridentes das enlouquecidas máquinas de escrever.


Pouco tempo depois foi promovido a repórter e com sangue nos olhos partiu para pôr o dedo na ferida das mazelas da vida e do cotidiano. Estava indo bem na cobertura policial. Até que pelas suas saídas diárias pelas ruas percebeu a falta de segurança na construção civil. Pedreiros e rebocadores ficavam sem equipamentos de segurança em arranha-céus de quinze, vinte andares. Apurou.


Ouviu todos os lados. Se certificou dos casos de acidentes graves subnotificados, mortes não registradas, recibo de propina para abafar as ocorrências. Pediu para o fotógrafo caprichar na imagem e mandou ver na matéria. Não sobrou pedra sobre pedra.


No dia seguinte, correu até a Banca do Polonês, na esquina do seu prédio, logo embaixo do viaduto, e viu estampada na capa a sua primeira manchete. Leu a reportagem de cabo a rabo.


Estava tudo lá. Nada foi cortado. Era ainda a primeira vez que assinava uma matéria. Comprou três exemplares. Um iria enquadrar; deixar pendurado na pequena sala em tons avermelhados de seu apê.


Chegou uma hora mais cedo do que de costume na redação. Queria sugerir a continuação da cobertura. Quando ainda subia os degraus da escada, cruzou de frente com a recepcionista. “Você viu? Você viu?”.


“Sim”. E o editor quer falar com você. Estou tentando te ligar desde cedo. Corre!”, implorou a recepcionista. Passou a passos largos pela redação e cheio de orgulho entrou no aquário do chefe localizado no corredor que dava acesso ao departamento de fotografia.


A reportagem o levou a ganhar uma promoção, com um ligeiro aumento de salário. “A partir de hoje você será o editor da Gazetinha”, convocou o editor-chefe. O suplemento infantil saia aos domingos com quadrinhos e desenhos para colorir. Nunca mais se falou naquele assunto na redação. E assim os anos foram se passando...


***

“Cala a boca e vai trocar de roupa. Você vai se atrasar”. Rangel Chavier já não estava mais suportando aquilo. Era ansioso demais para aguentar a demora dela.


Enquanto Margot estava no banheiro, ajeitando vagarosamente o batom nos longos lábios estreitos, foi até a geladeira. Pegou a última garrafa, aberta e ainda pela metade, de cava, original de Penedés, na Catalunha, que restou da festinha da madrugada de ontem. Pegou o copo americano, e despejou até a espuma explodir. Bebeu, e sentiu a bebida escorrer pelo queixo.


Foi até o quarto e mandou a dona tomar no cu. “Ela não deve estar recebendo as minhas cartas”, resmungou Rangel.


“Não quero que sinta mal”, tentou consolar Margot.


No lusco-fusco do quarto, Rangel Chavier rabiscava a folha de papel sulfite. Não sabia como começar mais uma carta. Queria lhe contar que havia descoberto que ainda tinha um par de dentes de leite.

Queria lhe contar sobre as cachaças novas que havia provado. Queria lhe falar que o Morte Dura estava aberto. E mais do que tudo: queria contar que estava cuidando do gato da gostosa da vizinha de apartamento que havia empacotado há três semanas.


Queria lhe contar ainda sobre o novo motorista da única viatura do jornal que havia acabado de chegar de uma cidadezinha de vinte e seis mil habitantes, chamada Panelas, no Planalto de Borborema, bem perto de Caruaru, no centro do agreste pernambucano.


Não sabia se a cidade existia de verdade. Paneleiro; alguém o chamou na redação. “De jeito nenhum. Panelense”, respondeu, sem delongas.


“Afinal, quem não está recebendo as suas cartas. Não fique assim. Quem é ela”,

questionou Margot.


“A vizinha. Vamos; se apresse. O gato pode estar com fome”


Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento.





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