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Jererê no bafafá

Por Roberto Cardinalli


Porque o mal nunca entrou pela boca do homem... Porque o mal é o que sai da boca do homem... (Pepeu Gomes)


Obra: Três Esfinges de Biquíni de Salvador Dali


Deu tudo errado. Isso não era para acontecer. Gerundio Astolfo Sazabó pegou sua mãe com a boca na botija, beijando outro homem. Depois de muito tempo resolveu quebrar o gelo e aparecer de surpresa. Não esperava dar o flagrante. Desde que a peste chegou ele tinha deixado de visitá-la. Sua mãe morava sozinha, duas quadradas acima numa casa geminada com a janela de madeira do quarto principal virada para a rua. Na verdade, entre outras coisas escusas, queria pedir uns trocados para a velhota.


Gordo e com cabelos brancos cumpridos, Gerundio, descendente de uma família tradicional do império austro-húngaro, era um recluso ator de teatro. Ficou conhecido municipalmente na década de setenta quando interpretou Jesus fumando um beque durante a santa ceia em A Paixão de Cristo. Depois dos comes e bebes do jantar se recusou a dividir o pão. Ops, ou melhor, o baseado com Iscariotes. Foi aí que tudo começou. Repetiu a peça milhares de vezes em tudo que era lugar. Entrou para o livro dos recordes como o ator que mais vezes trabalhou chapado na vida. Foi até entrevistado pelo Goulart de Andrade para o programa Vem Comigo! das madrugadas de sábado na TV Gazeta.


Tentou produzir outros espetáculos, mas o público sempre pedia para ele queimar um durante as peças mal acabadas que se seguiram. “Mais um”, pedia a galera ensandecida. Era aplaudido de pé pelos universitários e alternativos da época. Enfim, o jererê havia grudado nele e marcado sua carreira. Era uma larica atrás da outra de dar dó. Só sei que depois de um tempo as autoridades passaram a considerar a reputação de Gerundio duvidosa, motivo que os iletrados caretas lhe negavam apoio em seus projetos culturais tidos como pra lá de Bagdá.


Assim, sua produção independente não passava do quinto ou sexto ensaio. Os parcos recursos dos amigos apoiadores só davam para dar um dois. Os malucos que o acompanhavam, depois de mandar os beises, não conseguiam sequer decorar a primeira página do texto. E sem lenço e sem documento, mas com um bagulho sempre na mão, foi levando a vida na surdina.


Com a peste, Gerundo Astolfo Sazabó decidiu que iria entrar para a história da cidade. Fez e refez os cálculos e achou que tinha bagagem para dar e vender e se comparava aos grandes ícones artísticos da província. Sonhava com um trono de bronze, na bela Praça do Carmo, ao lado do maestro Carlos Gomes e mais próximo do Jockey Clube, o luxuoso prédio em estilo eclético e com elementos do art nouveau e da neorrenascença, no qual fazia constantemente suas apostas nos cavalos mais azarões do páreo. Jamais cravou nas barbadas. Uma pena! Os azarões nunca dão sorte.


Para se tornar um imortal, contava com a ajuda da contaminação. Se esforçava para deixar as portas e as janelas abertas para o pequeno vírus entrar. Queria ser comparado ao grande Olympio Nogueira, que morreu em outubro de 1918, caído por um ataque mortal da espanhola no Rio de Janeiro. O galã ficou muito popular por ser o primeiro ator a interpretar Jesus Cristo, assim como Gerundio, na peça sacra O Mártir do Calvário. O bom rapaz ainda atuou no cinema e estrelou a opereta A Viúva Alegre.


Começou a se aproximar dos órfãos da peste. Leu novamente a obra Cyrano de Bergerac, encenada pela primeira vez por Sarah Bernhardt, do poeta e dramaturgo marselhês Edmond Rostand, vitima da gripe. Nos encontros casuais com os seus scofflaws no Morte Dura contava repetitivamente a saga de Jacinta e Francisco Marto, os pastorinhos que receberam a visão de Nossa Senhora de Fátima, e que também sucumbiram contaminados.

“Que porra é essa!”, berrou Gerundio. “O que está acontecendo aqui. Depois de velha resolveu soltar a periquita por aí”. Cof. Cof. Cof. Cof. Cof. Por pouco a bagana não apaga.


O bigodudo teve um chilique e deixou cair à maleta de alumínio cheia de ferramentas no chão. A chave de fenda rolou pela calçada até parar na sarjeta e um monte de parafusos voou pelos ares. Puta barulhão. A vizinha da frente, mesmo com a maior dor de cotovelo, não se segurou. Correu colocar a cara na janela para ver o bafafá. O forrobodó ia ser o assunto da redondeza por uns bons tempos, principalmente nesses tempos em que não se tem assunto para falar.


A patroa sacou logo que iria ficar falada no bairro. Nem por isso se conteve, pois sabia que mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Deu um passo pra frente e escondeu o coroa esquelético e seboso atrás do seu corpo. Dona Sazabó sempre foi uma mulher, digamos, forte desde os tempos mais suculentos da vida.


Tudo bem que era uma assídua frequentadora dos bailes semanais do Clube das Solteironas e Desquitadas da Vila Marieta, mas nunca Gerundio soube que ela levava os rapazes para consolo em casa. Mais do que tudo, Gerundio estava mesmo se sentindo traído. Achava que poderia pegar o bichinho da mãe, mas percebeu que tinha concorrência no pedaço.


“Eu só estou trabalhando”, disse o malandro, morrendo de medo e catando os parafusos do chão.


Cof. Cof. Cof. Cof. Cof. “Quem é esse vagabundo aí?”, rosnou Gerundio.


“Marido de aluguel”, respondeu a danada.



Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento.


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