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Calhau

Atualizado: 1 de set. de 2022

Quem está falando?

Por Roberto Cardinalli

"E o que me resta é só um gemido. Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos. Meu sangue latino, minha alma cativa". Secos e Molhados


Ilustração de Quinho para o jornal o Estado de Minas sobre as obras de Camus: o absurdo e a falta de sentido do homem


Preciso te contar uma coisa. Minha vida está uma merda. A Cremilda me deu o pé na bunda. O facão correu solto na repartição, e como estava na lista do Alcântara, sobrou pra mim. Ele nunca foi mesmo com a minha cara. Perdi o emprego e estou sem serviço. Ainda bem que você ligou. Tá à toa também? Parece que todo mundo tá à toa hoje em dia.


Sabia que o Morte Dura fechou. Seo Alvarinho morreu. Será que lá também tá tudo vermelho? Até no céu deve tá. Se tiver, tá igual aqui. Piada, ruim né. Não precisa rir. Então, como tava falando, a Cremilda disse que ia fazer a mão na manicure, e não voltou mais. Tô roendo as unhas só de pensar. Te falei que não consigo ficar sozinho. Você sabe que tenho problemas comigo mesmo. Acho que ela foi embora de vez com aquele cacho dela.


Sempre desconfiei dela. Eu sabia. Eu tinha certeza. Ela me contou um dia que furou a fila da vacina. Dá pra confiar em alguém assim. Sempre me pareceu mais velha do realmente era. Enganou todo mundo, inclusive a mim. Sabe o que vai acontecer? Ela sim vai sobreviver a isso tudo. Vai viver, e, pior, com o outro. Mas, não sei mais se me importo com isso.


Vou sentir falta do seu café. Ela acordava cedo e ia direto para a boca do fogão. Eu levantava pouco depois a tempo de vê-la de costas com a camisola curta, arrumando o pão com manteiga e o leite sempre do mesmo jeito em cima da toalha quadriculada verde e branca sobre a mesa de fórmica dobrável que ficava do lado esquerdo da cozinha.


Não te contei que na última vez que ela preparou o café, falei que estava atrasado para ir ao serviço. Ela me pediu um quinhão para fazer a feira. Disse que não tinha. O pagamento estava atrasado há mais de dois meses. “Francamente, assim, não dá. Poderia ter arrumado um homem melhor pra minha vida”. “Calma”, eu disse. “Deus é pai”.


Então... Esse nhe nhe nhém com a Cremilda se prolongou mais do que eu esperava. Foi um chororô daqueles. Cheguei mais de meia hora depois do horário de bater o ponto. Como sou um dos poucos que têm de ir obrigatoriamente à repartição trabalhar por não ter computador em casa, todo mundo percebeu. Não tenho mais idade e nem saco para receber uma carta de advertência... E um pouco antes do meio dia o doutor Alcântara me chamou.


Acho que você não quer ouvir isso, quer? Se não quiser me fale, que eu paro.

Só sei que ia aproveitar aquela situação para ter um tête-à[1]tête com o patrão. Entrei na sala dele com o peito aberto; sentei em uma das duas poltronas velhas marrom e cheia de poeira nos cantos dos braços que ficavam em frente à sua pesada mesa de madeira de lei, e antes mesmo dele dar um pio eu disse... “Sabe seo doutô... Hoje em dia tá tudo pela hora da morte... E em casa a patroa tá pegando no pé. Sacomé... Estou num mato sem cachorro. Queria vê com o senhô se não dá para sair um adiantado aí do próximo mês.”


Vou contar exatamente o que ele respondeu. Nunca mais vou esquecer essa frase. “O rapaz, você sabe que a situação tá difícil. Não tamô conseguindo nem pagar os atrasados quanto mais o adiantado”. Só sei que na semana seguinte eu e mais uma dúzia de gatos pingados estavam no olho da rua. Além de perder a boquinha, fiquei desconsolado por ficar sem ver diariamente o quadril ofertante da Ofhélia, a secretária gostosona do chefe.


Desculpe falar isso, mas era de cair o queixo. Agora que tô falando nisso, tá me caindo à ficha. Será que não foi por isso que o doutor Alcântara me mandou embora? Corriam uns buchichos na repartição que o cara era maluco por ela. Essa era a fofoca mais falada no cafezinho da rádio peão. Mas, francamente, me demitir só por isso é molecagem e filhadaputice. Sempre fiz as coisas direito.


Viu, não vai contar nada para ninguém, mas deu vontade de sair no braço com sacripanta. Babaca! Meus instintos intestinais praguejavam. Me via dando uns tabefes na cara do percevejo maldito. Não! Não! Não! Claro que não fiz nada. Não sou disso. O que fiz? Saí sem falar com ninguém, e peguei o ônibus de volta. Sentado na terceira cadeira da janelinha do busão da linha 5.02, liguei várias vezes para a Cremilda, mas ela não atendeu. Um ponto antes da parada mais próxima de casa, ela retornou: eu disse que tinha algo não muito bom pra contar. Ouvi o ruído. Tssss... Tssss... dela, e, na sequência falou que a aguardasse, pois ia à manicure e voltava logo.


Olha, não precisa perguntar como estou. Tô tentando parar de fumar o maldito cigarro Continental. Não estou conseguindo, mas estou bem. Bem... Bem o caralho! Ops, desculpa. Na verdade estou péssimo. Há dias que não saio de casa. Aliás, não me deixam sair de casa. Tô com uma terrível dor, na consciência, e uma baita dor de cotovelo, pois sei que a Cremilda vai sair bem na foto. Ela nunca achou mesmo que valia a pena ficar comigo.


Ah!? Seu tô bêbado? Não sei. Tá parecendo? É minha voz. Tô falando demais? Acho que sim. Matei quase uma garrafa de vodca. Sempre, quando dava, a gente comparava a mais barata por uma mixaria que tinha no mercadinho da esquina. No fundo sabíamos que a bagaça nem russa era. Devia ser do Paraguai. A Cremilda era humilde, mas a moça era chique e petulante. Gostava de um bom Blood Mary com bastante molho inglês e dois talos de salsão. “Essa sempre será a minha verdadeira fase vermelha”, dizia antes do primeiro gole.


Mas, viu moço, desculpa interromper, é que eu tenho que ir.


Quem é que tá falando?


Aqui é a Judith, mas foi engano.



Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento.

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