Phósphoro
- URRO
- 29 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Pedacinho do céu por Flávio de Castro

Hoje o velho faz setenta e um anos. Lembro que no ano passado, quando o velho fez setenta a gente ouviu Pedacinhos do Céu, (choro de Waldir Azevedo, pra quem não nasceu ontem), ao vivo, ôxe, com violão de sete cordas e tudo. A gente comeu costela, bebeu cachaça e serviu bolo confeitado pra significar o que não tem data.
Hoje eu mando whatsapp pro velho, encabulado, perguntando do churrascão. Ele desatina, diz que é dia de asinha de frango se muito. Batuco a velha frase da tempestade finita. O velho responde:
Boa noite, bj.
A Carolina, estirada na sala, mistura a terceira taça com a segunda temporada de uma série escandinava. Nossas mãos, molhadas de suor, não conseguem respirar. Ouço Douglas Germano quando o Seu Raimundo interfona dizendo que chegou os seis latões do Porquinho’s Grill. Quando desço pra pegar meu graaal avisto a orquídea amarrada com arame na árvore. A orquídea que Seu João amarrou uma semana antes de enfartar aos 54 anos.
A mãe da Carolina avisa no grupo da família que vai ter golpe e se mostra apreensiva com a declaração do IR. O celular apita sem dó. Clarah declara que tomou cachaça com Zolpidem e que está com vontade de cessar de viver. Reparo no verbo cessar e digito:
- Hoje não, viada. Precisamos de você.
Davi foi pra casa do tio. Já comprou tudo quanto é jogador caro no FiFA 2019 depois de horas de lero-lero com Matheus sobre os melhores custos benefícios da Champions League. Seis horas depois se encurvou no sofá, olhando para o nada, enquanto o cachorrinho esperava algum movimento brusco para se espevitar.
Thiago me mandou uma música que fez num aplicativo de celular junto a uma guitarra de verdade. Tem até letra. A guitarra é bonita que dói, melhor não repetir. Guitarrinha que coça no peito e instaura uma vontade de sair pra não sei onde. Pra onde ninguém sabe, aliás.
Nem mesmo eu sei da dona Inês, tadinha. Lá no Asilo Nossa Senhora de Fátima, sem sair ou receber visitas, me confessou ao telefone que comeu os bombons chorando de alegria ou raiva, inteira naquele sonho de valsa que a floricultura Regina enviou no dia das mães mediante transferência em C/C.
Chorou Inês na valsa, Thiago na guitarra, Bruno Zamba quando o chorão tocou o Pedacinho do Céu no aniversário do velho.
Eu tento juntar esse mundaréu todo, tento registrar meu desbrasil. Logo menos nascerá um dia exatamente igual a todos os outros. 5h de uma madrugada imensa. Andreia me apressa e eu me apresso em lembrar de todo mundo que existe aqui nesse ainda 22 de maio. Parece cloroquina mas é só tristeza. Logo menos será sábado em BH. Avisa pra Vera que venceremos.
Oxalá. Pois Waldir Azevedo, segundo o Google, compôs Pedacinho do Céu no banheiro da Continental em 1923 ou 1946, sei lá. Logo menos, em todos nossos banheiros, um pedacinho do céu há de se insinuar. Azulejado, repleto, sereno. Quem viver, verá.
Flávio de Castro é autor de "Desaparecida"( 2016) e "A última casa noturna da manhã" (2018) pela Editora Urutau. Cronista do jornal O Beltrano e repórter diletante da Revista Fórum, é professor de literatura e faz "poesia e arte ladeira abaixo" pelas ruas e muros da América do Sul sob o codinome Sete Capetas. Flávio também é tio do Gregório e representa a Velha Guarda da Fiel BH, torcida organizada corinthiana da capital mineira.
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